Morar no Centro de Vitória é trafegar constantemente entre o desconhecido-conhecido. Nunca se sabe se na próxima esquina encontraremos uma nova barraca de frutas ou um viajante que vende tapetes, vestidos de festa junina e moedores de alho. Entre uma peça de teatro de rua com um grupo itinerante e outra, circunda um movimento cultural que tem se tornado cada vez mais expressivo.
É um alento poder escapar do trajeto esperado e rotineiro para adentrar ao inesperado. Saber os caminhos não significa conhecê-los, daí estamos suscetíveis a esbarrar a espontaneidade do instante que é o Outro. Dia desses, conheci dois novos caminhos enquanto andava pelas ruas que já conhecem o ritmo dos meus passos.

Pela manhã, um espaço inesperado na agenda permitiu que visitasse à exposição "A paixão mora no mistério", que está acontecendo no Maes, com as obras da artista Liliana Sanches. Saí profundamente comovida e sentindo que havia se apegado à minha face uma leve névoa rósea, suave, que me seguiu o resto do dia. Ainda diluindo esse efeito delirante e apaixonado, fui naquela noite à inauguração de outra exposição: "Protegida pelo inconsciente", da artista Bárbara Carnielli na Casa Flor, também no Centro de Vitória.
Ambas expõem em ambientes com propostas diferentes, no entanto, suas produções têm em comum esse movimento simultâneo e contemporâneo que expressa aquilo que se enraíza na via do simbólico. Seus trabalhos refletem sobre um modelo de linguagem que se reinventa fundo, a partir da própria subjetividade atravessando o corpo e o ato de criação.
A comunicabilidade com o desconhecido-conhecido está presente nas obras que atraem e acolhem o espaço da intimidade. Ela transita entre o onírico, numa pulsão selvagem e nebulosa, e a natureza, com o seu tempo. Desse contato, emerge um acordo desconfiado com a realidade e imensamente comprometido com a fluidez do imaginário.

Aceitei esse convite, implícito e inventado, ao mergulho. Me senti arrebatada por um polvo de tentáculos enormes e aconchegantes. Enquanto me deparava com a delicadeza ingênua da crença na fantasia, me dei conta de que este lugar não permaneceu intacto, expandiu. Talvez seja através dessa névoa molhada e movediça do mistério que a linguagem se realize.
Entre peixes, arraias, ostras, pedras, romãs, pérolas e galhos, desaguamos numa sensação íntima de encontro. As obras dessas mulheres revisitam o conhecido e ordinário, mas propõem uma reinvenção articulada ao desconhecido, ao mistério, ao incompreensível, ao que rege e ao mesmo tempo protege. A incursão a esses trajetos tão sensíveis de produção de linguagem e de pensamento nos reconduzem ao âmago da nossa própria subjetividade, o processo de originar e a possibilidade de criar num fluxo profundo e visceral. A mística também pode estar nisso.
LEIA MAIS PENSAR
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.