Entre 1964 e 1985, o Brasil viveu sob um regime militar marcado pela brutal repressão aos seus opositores, com supressão de garantias fundamentais e sufocamento da vida pública no país. A ditadura adotou, como é tônica em governos autoritários, diversas estratégias de controle político e social que resultaram em graves violações aos direitos humanos, incluindo a prática disseminada da censura, as prisões arbitrárias, a tortura, os “desaparecimentos” e assassinatos.
A truculência do regime buscou calar vozes críticas ao modelo econômico de progresso a todo custo, responsável por uma dramática ampliação das desigualdades sociais, e perseguiu quem clamava pela volta das liberdades democráticas.
Algumas décadas após o término oficial da ditadura, seus impactos ainda estão presentes em vários âmbitos da realidade brasileira. Com uma nitidez crescente e assustadora ao longo dos últimos anos, observamos as sombras dos anos de chumbo marcadas na ineficaz e violenta política de segurança pública, na pretensão de tutela da esfera militar sobre outras instituições e poderes, na normalização da tortura, na demonização e criminalização dos movimentos sociais e na lógica beligerante do debate político, quando visões divergentes são tomadas como ameaças a uma “ordem” nacional imperativa e inquestionável.
É notório que a sociedade brasileira não conseguiu lidar adequadamente, em termos culturais, políticos, históricos e jurídicos, com essa “página infeliz de nossa história”, como alertou o poeta.
Dentro desse contexto, a produção poética assume um papel relevante e ainda insuficientemente reconhecido enquanto elaboração simbólica do horror, isto é, como memória ativa do autoritarismo dos governos militares. Tal produção abarca um repertório heterogêneo, amplo e, em vários casos, de difícil acesso, dadas as limitações do mercado editorial à época, o desinteresse pela publicação de poesia e o impacto da censura.
Compreendendo o repertório poético dos anos de chumbo como um patrimônio histórico, cultural e artístico inquietante, o projeto "Memorial poético dos anos de chumbo" (CNPq/FAPES) iniciou as suas atividades em janeiro de 2023, com o intuito de mapear, reunir, preservar, analisar, discutir e divulgar esse repertório poético, tanto pelo seu papel enquanto documento histórico eloquente, como pela dimensão expressiva que atualiza essa mensagem no presente, comunicando-se diretamente com os leitores atuais.

Com uma equipe formada por mais de 20 pesquisadoras e pesquisadores de todas as regiões brasileiras, empreendemos um levantamento sistemático de poemas escritos entre 1964 e 1985 que abordam a ditadura militar brasileira. No momento em que chega ao público a antologia aqui apresentada, o repositório disponível na página do Memorial poético dos anos de chumbo (mpac.ufes.br) já catalogou e disponibilizou gratuitamente para leitura e pesquisa cerca de 1500 poemas sobre a ditadura. E o trabalho de ampliação desse repositório seguirá em curso até, pelo menos, o fim de 2025, com a expectativa de ampliarmos consideravelmente esse arquivo digital.
O livro “Memorial poético dos anos de chumbo: uma antologia” é, dessa maneira, uma seleção feita a partir desse levantamento maior. A partir dos cerca de 1500 poemas sobre a ditadura disponíveis atualmente em nossa página, selecionamos inicialmente cerca de 220 poemas para compor a antologia, dos quais 200 receberam autorização para constar no livro.
Seções
Optamos por organizar a antologia em sete seções. A primeira, intitulada “I- As aparências revelam”, título extraído de um poema de Cacaso, reúne poemas de caráter irônico e/ou satírico, que apontam aspectos da vida sob um regime de exceção, zombam dos vícios do poder e flagram a hipocrisia do regime.
Na sequência, em “II- Aqui a gente sai e não sabe se volta”, título que evoca um poema de Francisco Alvim, temos poemas voltados para a sensação de sufocamento. As marcas do panóptico, o medo como parceiro cotidiano, a liberdade restringida em prol de uma “segurança nacional” inflexível são elementos que ganham vida na elaboração artística da época.
Em “III- Sobre a luta nossa visão se constrói”, que recupera um belo verso de Orides Fontela, trazemos poemas que abordam atos cívicos e anunciam a esperança de superação das mazelas do período. Essa luta política remete primeiramente às passeatas, muito importantes como expressão da indignação popular logo após o golpe e, anos depois, na luta pela anistia. Mas também é figurada pela luta armada, momento de radicalização que se afirmou como alternativa na medida em que a repressão sobre os atos de rua tornava-se cada vez mais sangrenta.
As seções seguintes, intituladas “IV- O corpo entre as grades, a vida entre parêntesis” (adaptada de uma entrevista de Alex Polari) e “V- Venho falar pela boca dos meus mortos” (extraída de um célebre poema de Pedro Tierra), abordam, respectivamente, a denúncia das violações da dignidade humana perpetradas nos porões da ditadura, com torturas e sequestros ocupando função central nos aparatos repressivos, e dos assassinatos cometidos pelo regime, incluindo neste canto geracional a questão dos “desaparecidos” e comoventes homenagens a alguns dos muitos que morreram lutando pela liberdade do país.

Por sua vez, na seção “VI- Um poema, uma bandeira”, nomeada com versos de Ferreira Gullar, estão reunidos poemas de caráter metalinguístico, com grande ênfase no silenciamento imposto, seja pela censura seja pela perseguição política a escritores, bem como pela reflexão sobre os sentidos da poesia em um contexto de exceção. E, finalizando, a seção “VII- Na cova rasa da história” – cujo título foi extraído de um poema de Affonso Romano de Sant’Anna – inclui poemas que formulam, de variados modos, um balanço crítico dos anos de chumbo.
Todos os autores e autoras presentes no livro foram, em algum grau, vítimas dessa violência de Estado e tiveram a generosidade de compartilhar conosco, em seus poemas, parte dessas experiências, lançando para nós uma lição e uma tarefa: ditadura nunca mais! A eles e a elas, dedicamos o livro.
Trecho extraído da apresentação do livro“Memorial poético dos anos de chumbo: uma antologia”. Porto Alegre, Editora Zouk, 2024, 412 págs. Org: Marcelo Ferraz, Nelson Martinelli Filho e Wilberth Salgueiro.
LANÇAMENTO
Lançamento com a presença dos organizadores: dia 19 de junho, às 19h, no Shopping Jardins, R. Carlos Eduardo Monteiro de Lemos, 262, Jardim da Penha, Vitória – ES. O livro será vendido no local a R$ 80,00.
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