O mito grego de Prometeu, ao roubar o fogo dos deuses para entregá-lo aos humanos, me dá uma chave para comentar “Mariposa noturna em veranico de maio”, de Anaximandro Amorim. Sim, leitoras e leitores, hipócritas irmãs e irmãos da autora destas despretensiosas linhas ligeiras (peço permissão para citar Baudelaire), o mito desse roubo é cruel: em sua ânsia de liberdade, compaixão e solidariedade para com os entes humanos, Prometeu foi castigado de modo terrível. Mas eu, sinceramente, desejo que, ao contrário do final dolorido dessa lenda, estejam vocês solidários com a ação prometeica e apreciem a ousadia, o destemor e a força das histórias que o autor desse livro lhes entrega, em seus contos.
Em primeiro lugar, um aviso: não esperem considerações floridas ou doces amenidades nesta resenha que, com todo prazer da leitura, aqui faço. Acontece que nunca me cansarei de louvar a literatura que ousa dizer seu nome sem se preocupar com os valores de um hipócrita pudor social nem com os acenos de uma obra destinada a durar uma pretensa eternidade.
Para nossa alegria, há livros que não se importam com a superstição dos louvores à pudicícia, muito menos com as veleidades de escribas que se comportam como se estivessem criando valores de duração absoluta. Ou ainda pior, como se escrever ficção obrigasse ao uso de regrinhas bem comportadas, de imaculados lençóis da linguagem, de palavras dispostas em escadarias de mármore, flores em jarras, bibelôs de cristal.
Neste livro, Anaximandro Amorim exercita o contrário, pois parece fiel à ancoragem de seu compromisso literário com temas arrancados a espaços quase sempre mantidos à sombra da sociedade e a histórias que primam por uma atualidade pungente, em que personagens frágeis e marginalizados, tais como garotos andróginos, atores sem rostos, meninos franzinos, amantes misteriosos, prisioneiros em desespero, adúlteras, suicidas, matadores, famílias destroçadas por incestuosas relações, enfim, todo um cartel - carregado de dor, desafeto, desmesura e paixão – que vivencia embates, para sobreviver em ambientes hostis, por vezes camuflados em falsas familiaridades e demonstrações enganosas de afeto.
Coisas, aliás, que aparecem nos escritos de muitas autoras e autores de todos os tempos, que não se ocupam em ter pudores de escrever sobre temas espinhosos nem esperam que seja eterna a permanência daquilo que escrevem e, por isso mesmo, continuam a escrever, da melhor maneira que podem, sobre o que bem querem e imaginam e sobre o que entendem como necessário.
Assim é que, nos treze contos deste livro, o que vocês vão encontrar é a crua e extensa liberdade do dizer literário, muito mais voltado para personagens controversas e temas contemporâneos, de que para as preocupações com um fazer asséptico (e um tanto patético) daquele modelo de literatura que se pretende pudica, atemporal e eterna.
E a verdade é que atualmente vivemos, todas e todos, na iminência dos inimagináveis perigos advindos de catástrofes e desumanidades, não só sobre nossa existência, mas também sobre nossas culturas, atitudes, gestos e sentimentos.
Nesta acelerada passagem das horas, quando tudo parece girar na impermanência da espuma dos dias, a literatura só pode ser tratada como um bem mágico, oportuno e comum. Tal como foi, para a humanidade, o fogo divino roubado por Prometeu.
Talvez seja mesmo essa a tarefa mais justa para quem escreve ficção: o exercício de transformar a escrita em fragmentos de um acervo de histórias adaptadas ao conhecimento e à vertigem dos dias em que nos cabe viver. E talvez seja isso que o escritor Anaximandro Amorim exercita em “Mariposa noturna em veranico de maio”, com a força e habilidade de um raro prestidigitador.
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