Bandeira do Brasil:  hoje o que mais nos aflige é o desemprego em massa, o retorno da fome, a desindustrialização, a deterioração da infraestrutura nacional e o efeito Dunning-Kruger que consome o grosso da população
Bandeira do Brasil:  hoje o que mais nos aflige é o desemprego em massa, o retorno da fome, a desindustrialização, a deterioração da infraestrutura nacional e o efeito Dunning-Kruger que consome o grosso da população. Crédito: Pixabay

Brasil precisa da política dos grandes estadistas para sair do lamaçal

A política é um poderoso instrumento de conquista de mentes e corações e, por consequência, de transformação sociocultural profunda

Publicado em 01/05/2021 às 02h00
  • Lorenzo Caser Mill

    É advogado graduado pela Ufes

*Continuação do artigo Livro sobre o Espírito Santo dá lições valiosas à crise brasileira, publicado no último sábado (24), pelo mesmo autor.

Como modificarmos, então, a realidade que vem se desenhando no Brasil? O caminho apontado no livro “Decadência e Reconstrução” (Carlos Melo, Malu Delgado e Milton Seligman) como traçado pelo nosso Estado é a política. Parece cândido falar assim, mas, de fato, trata-se de um poderoso instrumento de conquista de mentes e corações e, por consequência, de transformação sociocultural profunda.

Não faz meu tipo citar autores ao léu para emplacar argumento de autoridade ou para simples floreio do texto, mas a ideia concebida por Aristóteles no Livro I de “Ética a Nicômaco” nos faz entender o porquê de o sucesso político de uma comunidade acarretar, quase que necessariamente, o sucesso nas demais áreas de interesse humano.

Vale a transcrição: “A política mostra ser dessa natureza [arte ou ciência cujo objeto de estudo é o sumo bem], pois é ela que determina quais as ciências que devem ser estudadas num Estado, quais são as que cada cidadão deve aprender, e até que ponto; e vemos que até as faculdades tidas em maior apreço, como a estratégia, a economia e a retórica, estão sujeitas a ela. Ora, como a política utiliza as demais ciências e, por outro lado, legisla sobre o que devemos e o que não devemos fazer, a finalidade dessa ciência deve abranger as das outras, de modo que essa finalidade será o bem humano. Com efeito, ainda que tal fim seja o mesmo tanto para o indivíduo como para o Estado, o deste último parece ser algo maior e mais completo, quer a atingir, quer a preservar. Embora valha bem a pena atingir esse fim para um indivíduo só, é mais belo e mais divino alcançá-lo para uma nação ou para as cidades-Estados”.

Então, abordando o processo capixaba, a obra atribui a Paulo Hartung o mérito de aglutinar, em torno de uma candidatura, movimentos relevantes que se erigiam contra o flagelo ético da política capixaba, em especial o Fórum Reage Espírito Santo — cujo corpo reunia a OAB, a Igreja Católica, sindicatos e lideranças comunitárias; e o Espírito Santo em Ação, formado por empresários cansados da depenagem a que eram submetidos e do declínio econômico vivenciado pelo Estado. Merecem destaque, nesse contexto, o ex-presidente da seção capixaba da OAB, Agesandro da Costa Pereira, e o ex-deputado estadual Claudio Vereza, ambos constantemente ameaçados de morte durante o período.

Hartung não era visceralmente identificado com os dois mencionados grupos, tampouco era um símbolo de combate feroz ao crime organizado — imagem mais associada a Max Mauro, seu concorrente no pleito de 2002. Com juventude militante no Partidão (antigo PCB) e passagens por PPS e PSB, ninguém o colocava exatamente como representante do empresariado; e seus onze anos de PSDB impediam ligação com o PT de Claudio Vereza. Apesar de tudo isso, após a sua eleição, fez de Vereza o presidente da Assembleia e chamou o setor produtivo para participar da reorganização e do planejamento econômicos.

O destaque negativo fica por conta da ruptura apenas tímida com personagens de rabo sabidamente preso. Talvez, porém, tenha sido essa a condição inafastável daquele momento circunstancial: não conseguir descartar o cogumelo venenoso, mas levá-lo na carroceria, não na boleia. Enfim, julgamentos a posteriori que sempre correm o risco de terminar em anacronismo, dada a alteração das circunstâncias que faziam daquele recorte histórico algo único.

Em suma: participação ativa de organizações civis, sopesamento de interesses legítimos e delimitação honesta de problemas a serem superados — parece ser esse o remédio político para um cenário de incerteza socioeconômica e de crise ética, assim como o experimentado, hoje, pelo país. A questão é que esse é um processo dialético, ou seja, que alça o diálogo à função de meio para a obtenção do resultado satisfatório, sendo tal resultado uma resposta verdadeira para as seguintes perguntas: “Quais são os nossos problemas e o que devemos fazer para superá-los?”.

A FALTA DE CONSENSO

Novamente evocando um nome sem intenção de adorno — até porque tenho ressalvas ao raciocínio —, Jürgen Habermas, referindo-se à razão comunicativa, acentua que os sujeitos que se comunicam pela linguagem apoiam-se necessariamente num consenso que serve de “pano de fundo” para sua ação comunicativa.

O consenso torna-se manifesto mediante reconhecimento recíproco e prévio — ou seja, anterior ao diálogo concreto — de pretensões de validade. Em outras palavras: só é possível construir uma verdade — a nossa verdade, ao menos no tocante às duas perguntas acima — se eu, você e os demais atores políticos brasileiros assumirmos como válidas, de antemão, algumas premissas essenciais.

Estamos nitidamente falhando nesse aspecto. Há várias premissas que, embora parecessem sólidas até ontem, estão sendo rejeitadas por parcela relevante da sociedade — e pior: por uma parcela que não poderia recusá-las, pois não tem gabarito intelectual ou empírico para tanto —, acabando por transformar qualquer tentativa de ação comunicativa em compartilhamento de crendices, em emissão irracional de sons.

Exemplo hipotético: não há medicamento eficaz contra uma determinada doença — esse é o “problema”; as soluções para isso são inúmeras e podem ser amplamente discutidas no campo político, mas certamente não passam pela prescrição de um medicamento sem eficácia comprovada. Atenção para o último termo: “eficácia comprovada” envolve uma premissa que assumimos de antemão, qual seja, a de que acatamos a metodologia científica empregada no teste de drogas e a confiabilidade dos periódicos científicos de maior renome, nos quais os resultados das pesquisas (feitas com método) são publicados.

Se essa premissa, que chamaremos de Y, não for previamente aceita por um dos interlocutores, a racionalidade do diálogo resta inviável, pois a manifestação “devemos fazer X porque Y” poderá ter como resposta “mas prefiro fazer W porque Z”. E “Z”, neste caso, é a opinião de um parente médico com base em relatos de nove ou dez pacientes, são vídeos de WhatsApp gravados por uma figura excêntrica ou, a depender da gravidade do surto coletivo, é a recomendação do presidente da República – estou falando em termos hipotéticos, claro.

DESENVOLVIMENTO E POBREZA

Outro exemplo de problema é “subdesenvolvimento econômico do país”, cuja premissa fundamental a ser assumida antes do diálogo sobre possíveis soluções é a seguinte: um terço da população deve ser elevado a um nível aceitável de renda. Se o interlocutor admite extrema pobreza e miséria como realidades coexistentes à sua, temos, aí, um diálogo inexitoso e infrutífero desde o princípio, já que seria ilógico e irracional, em percepções modernas, falar-se em nação desenvolvida economicamente com boa parte da população vivenciando insegurança alimentar.

Enfim, torna-se infactível qualquer consenso político em torno de um problema se certas premissas forem negadas por quem não possui autoridade — não no sentido de poder, mas de prestígio e crédito que se reconhece a alguém por sua legitimidade ou qualidade em alguma matéria — para assim proceder. A inclinação de parcelas da sociedade a um solipsismo histérico — “nada é válido fora das minhas próprias experiências e fantasias” — tem levado as tentativas de construção dialética a se mostrarem meros murros em ponta de faca, terminando por consolidar a nossa ruína.

Se o Brasil quiser emergir do lamaçal se espelhando no razoavelmente bem-sucedido processo capixaba — a tragédia das eleições de 2020 exige que fiquemos de olhos bastante abertos —, precisa deixar de ser uma Casa Verde machadiana. “O Alienista” encena com eloquência o fracasso de se confiar o destino de uma comunidade a experimentações simplórias, com pouco ou nenhum precedente; e o erro, ainda mais condenável, de se insistir nesse fracasso.

Aceitemos que, hoje, o que mais nos aflige não é uma suposta conspiração judaico-bolchevique mundial, e, sim, o desemprego em massa, o retorno da fome, a desindustrialização, a deterioração da infraestrutura nacional e o efeito Dunning-Kruger que consome o grosso da população.

Depois de décadas de protagonismo regional e de impacto no mundo emergente, somos uma piada internacional. Chega de estagiários. Precisamos da política dos grandes estadistas.

*Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta

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