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'Somos um povo profundamente preconceituoso', diz Laurentino Gomes

"Somos um povo profundamente preconceituoso", diz Laurentino Gomes

Autor do livro “Escravidão: Do primeiro leilão de Cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares”, o jornalista e escritor mostra que conhecer a história do Brasil é o caminho para combater as desigualdades de hoje

Publicado em 15 de novembro de 2019 às 22:45

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O jornalista e escrito Laurentino Gomes com o livro Escravidão - Volume I. (Sara Gandhour)

Se você, caro leitor, já ouviu dizer que a escravidão no Brasil foi mais branda ou que a mistura de povos rompeu com todas as barreiras raciais em nosso país, o livro “Escravidão: Do primeiro leilão de Cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares”, de Laurentino Gomes, surge para derrubar esses e outros tantos mitos que cercam o tema, considerado pelo autor o mais importante da história brasileira.

A obra faz parte de uma trilogia composta por cerca de 1500 páginas. Uma porta de acesso, como diz Laurentino, a um conhecimento profundo dos três séculos durante os quais cinco milhões de escravos foram trazidos da África para o Brasil.

Os seis anos de pesquisa sobre o assunto - incluindo cinco viagens a oito países africanos - dão ao jornalista e escritor absoluta convicção para afirmar que para além das cicatrizes do passado, a discussão do tema é fundamental para a compreensão da realidade atual, marcada pela desigualdade. A escravidão criou raízes.

“Os indicadores sociais mostram um abismo de oportunidades entre a população descendente de colonos europeus e os afrodescendentes em todos os itens das nossas estatísticas. Nós somos um povo profundamente preconceituoso”, pontua Laurentino em entrevista exclusiva para A Gazeta.

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    A história ajuda a explicar o Brasil que temos hoje, incluindo o clima de promiscuidade entre os interesses públicos e privados que se observa em Brasília, a enorme desigualdade social, a ineficiência do Estado brasileiro, o preconceito racial e outros aspectos que tanto nos preocupam neste início de século XXI. O regime de toma-lá-dá-cá que se estabeleceu no Brasil depois da chegada da família real de Dom João, em 1808, foi escabroso. Na opinião do historiador Manuel de Oliveira Lima, os treze anos de permanência da corte portuguesa no Rio de Janeiro foram um dos períodos de maior corrupção na história brasileira – com a ressalva de que Oliveira Lima morreu há quase cem anos e não teve a oportunidade avaliar o que aconteceu depois disso. Uma herança da época de Dom João é a prática da "caixinha" nas concorrências e pagamentos dos serviços públicos. Oliveira Lima, citando os relatos do inglês Luccock, diz que cobrava-se uma comissão de 17% sobre todos os pagamentos ou saques no tesouro público. Era uma forma de extorsão velada: se o interessado não comparecesse com os 17%, os processos simplesmente paravam de andar. Portanto, estudar 1808, 1822 e 1889, ou seja, as três datas fundamentais para a construção do Brasil como nação independente no século 19, ajuda a explicar a maneira como nos constituímos do ponto de vista legal, institucional e burocrático. Mas não é o suficiente para entender os aspectos mais profundos da nossa identidade nacional. Para isso é preciso ir além da superfície, observar o que fizemos os nossos índios e negros, quem teve acesso às oportunidades e privilégios ao longo da nossa história e como a sociedade e a cultura brasileiras foram se moldando desde a chegada de Pedro Álvares Cabral na Bahia até os dias de hoje. Ao fazer isso, me dei conta de que o assunto mais importante da nossa história não são os ciclos econômicos, as revoluções, o império ou a monarquia. É a escravidão. O trabalho cativo deu o alicerce para a colonização portuguesa na América e a ocupação do imenso território. Também moldou a maneira como nos relacionamos uns com os outros ainda hoje. Neste início de século 21, temos uma sociedade rica do ponto de vista cultural, diversificada e multifacetada, mas também marcada por grande desigualdade social e manifestação quase diárias de preconceito racial. Isso, no meu entender, é ainda herança da escravidão.

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Neste início de século 21, temos uma sociedade rica do ponto de vista cultural, diversificada e multifacetada, mas também marcada por grande desigualdade social e manifestação quase diárias de preconceito racial

Laurentino Gomes
Jornalista e escritor
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    A participação dos africanos no tráfico de escravos se tornou um tema politicamente explosivo no Brasil e em Portugal. Durante a campanha eleitoral de 2018 discutiu-se muito se os portugueses entravam na África para capturar escravos ou se africanos escravizavam africanos. Obviamente, os portugueses entravam, sim, na África. Ocuparam e colonizaram Angola, um território enorme, para abastecer o tráfico negreiro. Mas essa discussão pode ter consequências políticas muito ruins. Muita gente afirma que, se os africanos participaram e lucraram com a escravidão, não haveria razão para manter no Brasil, por exemplo, um sistema de cotas de inclusão dos afrodescendentes em escolas ou postos da administração pública. A chamada "dívida social" brasileira em relação aos descendentes de escravos estaria anulada pelo fato de os africanos serem corresponsáveis pelo regime escravista. Desse modo, não haveria porque indenizá-los ou compensá-los pelos prejuízos sociais e históricos decorrentes disso. Tudo isso é muito injusto porque, obviamente, não se pode culpar os escravos pela própria escravidão. O fato de chefes africanos terem participado do tráfico nada tem a ver com a enorme dívida social e real que o Brasil possui com os seus afrodescendentes. Basta olhar as estatísticas, onde a nossa população negra aparece como a parcela da sociedade com menos oportunidades e a que mais sofre com a desigualdade social crônica brasileira. Precisamos corrigir isso urgentemente. E não podemos nos esconder atrás de falsas e incorretas discussões a respeito de fatos históricos.

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    Sim, sou a favor das cotas. A começar pelo seu caráter simbólico. Mais de um século depois da Lei Áurea, é a primeira vez que o Brasil, sob um regime democrático, tenta implantar políticas públicas destinadas a enfrentar o legado da escravidão. O regime de cotas é polêmico, aqui e em qualquer outro lugar do mundo, mas representa um esforço genuíno de enfrentar um problema com o qual o Brasil nunca se preocupou antes. A escravidão na América acabou, legalmente e formalmente, em maio de 1888. Mas, infelizmente, continua a existir, no Brasil e no mundo todo sob outras formas mais sutis e disfarçadas de exploração do trabalho, desumanas, indignas e inaceitáveis para os padrões éticos que julgávamos ter atingido neste início de século 21. Isso atinge especialmente a nossa população afrodescendente e faz com que, por exemplo, nas 500 maiores empresas que operam no Brasil, apenas 4,7% dos postos de direção e 6,3% dos cargos de gerência sejam ocupados por negros. Os brancos são também a esmagadora maioria em profissões qualificadas, como engenheiros (90%), pilotos de aeronaves (88%), professor de medicina (89%), veterinários (83%) e advogados (79%). Temos que encarar o racismo de frente como os americanos fazem hoje. As cotas raciais para descendentes de africanos e postos de administração pública são um importante mecanismo de correção de injustiças e desníveis de oportunidades entre os brasileiros. Nós nunca vamos ter um país decente, enquanto nós não dermos as mesmas oportunidades para a população afro-brasileira se expressar na sua plenitude nos seus talentos e vocações. Mais do que o pagamento de uma dívida histórica, portanto, as cotas são um importante investimento no futuro do Brasil.

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    Sim, acredito que essa obra pode inspirar algum traço de racionalidade numa discussão que, nas redes sociais e nos pronunciamentos políticos, muitas vezes se resume a gritaria, polarização e intolerância. Apesar do fôlego aparente, em três volumes, esta série de livros não pretende nem poderia ser um estudo exaustivo ou definitivo da escravidão. Seria impossível, além de arrogante e pretensiosa, qualquer tentativa de esgotar um assunto tão vasto, importante e premente, embora numa obra que, no conjunto, terá cerca de 1.500 páginas. Por essa mesma razão, ao definir o escopo desse projeto, fiz questão de usar um artigo indefinido no título: “UMA história da escravidão no Brasil”, em lugar de “A história da escravidão no Brasil”. É uma entre muitas possíveis narrativas, visões e interpretações num campo marcado por numerosa, diversificada e complexa bibliografia. Meu propósito é destacar e explicar alguns aspectos que julgo importantes na análise do assunto seguindo a fórmula já utilizada nos livros anteriores, mediante o uso de linguagem jornalística, simples e fácil de entender. Ou seja, mais uma vez eu quero ser um “abridor de portas” para leitores jovens, mais leigos, ou que nunca se interessaram pelo assunto. Gostaria que essa trilogia servisse, para esses leitores, de porta de acesso para um estudo mais aprofundado e completo.

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    Períodos que nós consideramos traumáticos na história do Brasil e que não estudados quanto deveriam são precisamente aqueles que contrariam alguns mitos muito fortes criados a respeito de nós próprios brasileiros. É o caso da escravidão. No passado, criou-se um mito no qual o Brasil teve uma escravidão mais benévola, branda, patriarcal, boazinha e que o resultado seria uma grande democracia racial. Que nós nos misturamos todos e não haveria barreira racial no país. Quando você olha a realidade hoje isso não é verdade, os indicadores sociais mostram um abismo de oportunidades entre a população descendente de colonos europeus e os afrodescendentes, em todos os itens das nossas estatísticas. Nós somos um povo profundamente preconceituoso. A população negra é a mais exposta à violência, inclusive da própria polícia e ao crime organizado. Então, é um mito que está sendo desmentido, o que dificulta o estudo da escravidão. Há outros exemplos de mitos que estão sendo gradualmente derrubados. Um deles, muito forte no passado, dizia que o brasileiro seria um povo pacífico, ordeiro, cordial, que não haveria sangue e nem conflito no Brasil. Mas, quando você estuda a história descobre que isso não é verdade, houve muita guerra, bastante conflito e violência. Morreu muita gente na guerra da independência, depois no período da regência e logo na Proclamação da República morreram mais de trinta mil pessoas para que esse regime se consolidasse, incluindo a Guerra de Canudos. Esse mesmo mito é desmentido hoje pelas estatísticas, segundo as quais, das cinquenta cidades mais violentas do mundo, dezenove estão no Brasil. Se somos um povo assim tão cordial e pacífico, como se explica tanta criminalidade e tanta insegurança? O mesmo acontece com a corrupção, enorme e recorrente nos noticiários, que se choca com o mito de um país honesto e trabalhador. Por isso é tão importante estudar história, para entender quem realmente nós somos, o que fomos até hoje e o que pretendemos ser daqui para a frente.

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Os indicadores sociais mostram um abismo de oportunidades entre a população descendente de colonos europeus e os afrodescendentes

Laurentino Gomes
Jornalista e escritor
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    O Brasil foi construído por escravos. Todos os nossos ciclos econômicos e todas as fases mais importantes da história brasileira até o final do século XIX tiveram como alicerce a escravidão. Isso explica também porque demoramos a acabar com o comércio de pessoas escravizadas, como se fossem mercadorias, entre nós. Discursos e artigos de jornais até às vésperas da Lei Áurea, de Treze de Maio de 1888, previam que o Brasil não conseguiria sobreviver sem a exploração da mão de obra cativa. Viciado em escravidão, o Brasil resistiu enquanto pode aos esforços abolicionistas. Em meados do século 19, a situação chegou a tal ponto que a Inglaterra, maior potência econômica e militar do planeta e cuja opinião pública exigia a imediata abolição do tráfico negreiro, passou a dedicar ao Brasil tratamento equivalente ao reservado aos estados barbarescos do norte da África envolvidos com a pirataria. Sob a mira dos canhões britânicos, navios negreiros eram aprisionados a caminho do litoral brasileiro e submetidos a cortes de justiça inglesas, que geralmente confiscavam as embarcações e devolviam suas cargas humanas ao litoral africano. Nada disso parecia amedrontar os traficantes. A primeira lei brasileira de combate ao comércio negreiro, aprovada em 1831 por pressão do governo britânico, nunca pegou. Era, como se dizia na época, "uma lei para inglês ver". Mesmo oficialmente proibido no país e condenado por tratados internacionais, o tráfico continuou de forma intensa e sob as vistas grossas das autoridades. Calcula-se que entre 1840 e 1850, ano da chamada Lei Euzébio de Queiroz (que finalmente pôs fim ao tráfico) entraram no Brasil, em média, de 30.000 a 40000 escravos africanos por ano. O tráfico de escravos era um negócio gigantesco, que movimentava centenas de navios e milhares de pessoas dos dois lados do Atlântico. Incluía agentes na costa da África, exportadores, armadores, transportadores, seguradores, importadores, atacadistas que revendiam no Rio para centenas de pequenos traficantes regionais, que, por sua vez, se encarregavam de redistribuir as mercadorias para as cidades, fazendas, minas do interior do país. Em 1812, metade dos 30 maiores comerciantes do Rio de Janeiro se constituía de traficantes de escravos.

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    Infelizmente, existem algumas distorções que são bastante parecidas com o estudo e o ensino oficial da escravidão fora da África. Estuda-se e discute-se pouco o papel dos próprios africanos no processo de escravização. Há uma ênfase muito grande no papel dos europeus, dos traficantes e dos compradores de cativos na América. Desse modo, os africanos são apontados como unicamente vítimas do regime escravista. De fato, pelo menos 12,5 milhões de cativos foram vítimas do tráfico na África. A escravidão distorceu a maneira como as sociedades africanas se organizavam. O tráfico de escravos drenou uma quantidade inacreditável de recursos humanos do continente africano, distorceu a economia e as relações de poder nas sociedades afetadas pelo comércio de cativo. Regiões inteiras do continente foram redesenhadas em razão disso. As marcas históricas ainda estão bem presentes lá. Mas, em meio a toda essa dor e sofrimento, há ainda uma lacuna que precisa ser preenchida, e que diz respeito ao papel dos chefes da elite militar africana que, durante mais de três séculos, aliaram-se aos traficantes europeus e brasileiros, capturaram escravos no interior do continente e os venderam no litoral, para os capitães dos navios negreiros que cruzavam o Oceano Atlântico como escravos a bordo. E se enriqueceram muito com isso. Grande parte da elite africana atual é herdeira desses comerciantes de escravos nativos. Isso se discute muito pouco, tanto na África quanto no Brasil, ou em Portugal.

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    Em todas as minhas cinco viagens a oito países africanos, ao longo do segundo semestre de 2017, eu, como brasileiro, me senti sempre muito bem acolhido e muito bem tratado. Não observei qualquer traço de ressentimento de cobrança ou ressentimento relacionado a história da escravidão. Coisa bem diferente ocorre, por exemplo, em Angola em relação aos portugueses, que hoje ainda são apontados como os culpados pelos grandes problemas do país. Isso acontece porque o chamado processo de “descolonização” ainda é bem recente. Houve uma guerra contra os portugueses durante a independência de Angola apenas meio século atrás. Por isso, o clima de má vontade de parte a parte é ainda muito grande. Em relação ao Brasil isso não acontece. Ao contrário. Senti que, se dependesse dos africanos, a aproximação seria maior do que a que temos hoje.

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    As minhas viagens à África ocorreram logo após o impeachment da presidente Dilma e a posse de Michel Temer. Havia um certo ressentimento entre as autoridades africanas, até então acostumadas a um tratamento mais amigável por parte do governo brasileiro, incluindo o generoso financiamento de obras públicas com dinheiro do BNDES e a participação das empreiteiras envolvidas na Operação Lava Jato. Muitas dessas obras estavam paradas ou abandonadas. O vácuo deixado pela ausência do Brasil é ocupado hoje pelos chineses, cujos projetos estão espalhados por todo lugar. Encontrei-as em Cabo Verde, Angola e Moçambique – para citar apenas três dos países africanos de língua portuguesa que visitei no meu trabalho de reportagens. São obras gigantescas identificadas com placas, também enormes, escritas em mandarim, o idioma predominante na China. A agressividade chinesa na África podia ser medida, entre outras providências, na criação do Fórum de Macau, organismo de cooperação com as nações lusófonas na África, inciativa que tem o óbvio propósito de se contrapor à CPLP, a Comunidade do Países de Línguas Portuguesa. O Brasil, embora seja um dos fundadores da CPLP, nunca deu a devida importância à entidade. Brasil e África já estiveram mais próximos. Como bem demonstrou Pierre Verger, até o final do século 19, havia rotas regulares de navios entre Salvador, na Bahia, e a Nigéria, por exemplo. Angola tentou aderir à independência do Brasil, em 1822. O intercâmbio econômico e cultural era bastante intenso nessa época, muito em consequência do próprio tráfico negreiro. Hoje, essas relações estão mais frias, mas marcas brasileiras são hoje bem visíveis no continente africano. Em Gana e no Benim encontrei uma numerosa comunidade de descendentes de ex-escravos retornados durante o século 19. Ocupam posições importantes na hierarquia social. Alguns foram presidentes, ministros, governadores. Esses ex-escravos deixaram também contribuições importantes na arquitetura, nas artes e nos costumes em diversos países. Na cidade Porto Novo, no Benim, por exemplo, há uma mesquita muçulmana com traços arquitetônicos de igreja católica brasileira. Foi construída por escravos libertos da Bahia, que tinham por ofício erguer templos católicos no Brasil e levaram sua técnica de construção para a África. Essa influência continua muito forte ainda hoje. As novelas da Rede Globo têm uma audiência enorme nos países de línguas portuguesa. Ao ponto de alterar o sotaque o modo de fala o idioma nesses locais.

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