Infelizmente, Leonardo (nome fictício), você é portador do vírus HIV. Assim, na lata, o médico relatou o meu pesadelo. E eu achando que era apenas uma tosse e uma falta que ar que teimava em não passar. Fique calmo, procure um tratamento. Vai dar certo e você vai ter uma vida normal. Esse tormento vai passar, acentuou o doutor, em tom de impotência, vendo o meu desespero.
Tá!, respondi com a voz embargada e uma lágrima que teimava em escapar dos olhos arregalados, assustados com a trágica notícia. Saí, bati a porta do consultório e pensei (desmoronando): O que está acontecendo? Esse cara tentando me acalmar. Ele não tem ideia do que é viver com essa praga. É uma sensação de impotência, angústia, dor que não tem tamanho. É terrível saber que você vai morrer aos poucos...
Assim, só que desta vez mais conformado, o rapaz de 29 anos (que descobriu ser soropositivo há cerca de cinco anos) relatou o seu drama à reportagem de A GAZETA. Para ele, é doloroso ser uma das 12.210 pessoas que vivem com HIV/Aids no Espírito Santo (de acordo com dados de 2018 fornecidos pela Secretaria de Saúde do Estado, a SESA).
Léo está sorrindo e, mesmo abatido, insiste em dizer que está bem. Afirma, também, que tomou uma decisão: não estou mais tomando os medicamentos. Resolvi fazer um tratamento alternativo, com alimentação saudável. Não preciso mais deles (dos remédios) para ser feliz. Vou conseguir a minha libertação, desabafa, muito atrelado a questões religiosas.
O rapaz, então, entra para outra estatística. É uma das 1.650 pessoas consideradas pela SESA com baixa adesão ao tratamento com antirretrovirais, os chamados coquetéis, que são distribuídos gratuitamente em 26 Serviços de Atendimentos Especializados (SAE) em HIV, Sífilis e Hepatites Virais, distribuídos por todo o Estado.
Manter um recurso terapêutico regular (aliados a exercícios físicos e uma boa alimentação) fazem os portadores de HIV terem um cotidiano completamente normal, com a mesma expectativa de vida de pessoas não soropositivas. A doença não é mais sinônimo de morte e, relembrando a campanha da UNAIDS (criada pela ONU para buscar soluções no combate à Aids), lançada em 2018, se o paciente tomar a medicação sem falhar, normalmente em seis meses consegue deixar a corrente sanguínea livre do vírus HIV, tornando-se indetectável, assim, incapaz de transmitir a doença.
Forma melhor de prevenção (além do uso do preservativo, é claro) não existe. E, lógico, não há melhor momento do que o 1º de dezembro, o Dia Mundial da Luta contra a Aids, para reafirmar essa vitória dos pacientes positivos.
Infectologista, mestre em Doenças Infecciosas, e professora do Departamento de Medicina da Universidade de Vila Velha, Tâmea Pôssa atua desde 1991 no campo de batalha contra o HIV.
Comecei fazendo residência em São Paulo, no Hospital Emílio Ribas, um dos primeiros a tratar de casos da doença no país. No início da epidemia (que teve o primeiro diagnóstico no Brasil em 1982), acompanhei muita gente morrendo. Por mais que tentássemos curar as infecções oportunistas, e dar força para os pacientes continuarem lutando para viver, era um sentimento de impotência muito grande, confessa, dizendo que, com a evolução dos antirretrovirais e a facilidade de acesso ao recurso terapêutico no Brasil, acentuados no final da década de 1990, conviver com a Síndrome da Imunodeficiência Humana - que praticamente ganhou status de doença crônica - não é mais um fantasma.
Hoje, só não vive o melhor da vida quem não toma os remédios. Tivemos 185 óbitos registados no Espírito Santo em 2018, mas são mortes, em sua maioria, evitáveis. Conhecer o diagnóstico precoce faz com que você comece a terapia imediatamente. Assim, evita infecções oportunistas. Tornando-se indetectável, você consegue ter qualidade de vida, além de não transmitir a doença, aconselha a especialista, afirmando que ainda falta um diálogo franco com a sociedade (e, especialmente, no núcleo familiar) para que o combate ao HIV avance ainda mais.
Tudo que é ligado à sexualidade é tabu. Muitas pessoas têm vergonha de retirar o medicamento no SAE ou mesmo deixa de tomar o remédio por conta do rótulo, porque não quer que a família saiba de sua condição sexual. O machismo, preconceito e sexismo (nos casos em que o marido contamina a esposa, mesmo sendo o seu único parceiro sexual) estão entre os fatores que mais levam às pessoas a abandonarem o tratamento, afirma .
O problema, em alguns casos, está na cabeça do próprio paciente, em uma negação de sua condição. É preciso ter uma relação aberta com o médico, até para que possam ser criadas estratégias de terapia e de prevenção. Muitos se sentem invadidos só por dizer como contraíram o vírus. Outros falam que é uma punição por um comportamento considerado inapropriado, como se fosse uma volta aos anos 1980, quando afirmavam que a doença era uma praga homossexual. Um retrocesso imenso, lamenta.
A médica acredita que a geração que não viveu o auge da epidemia (e não viu a condição de Cazuza na década de 1990) ainda tem medo de pegar a doença, porém são os que mais rejeitam a prevenção. Muitos até são reticentes em continuar com o recurso terapêutico.
A sociedade tinha mais preconceito nas décadas de 1980 e 1990, quando perdemos Cazuza, Renato Russo e Freddie Mercury. Hoje, a discriminação está mais velada, pois os mais jovens entendem as causas e os efeitos da doença. Porém, alguns acham que o HIV é simples, sendo resolvido apenas com o ato de tomar comprimidos. Eles esquecem que é uma doença que traz uma inflamação crônica, incurável e que pode causar envelhecimento precoce, entre outros danos ao organismo. Você não morre, mas precisa mudar completamente o seu estilo de vida. É muito mais fácil se prevenir usando preservativos e fazer a terapia de forma regular, acentua.
Coordenadora Estadual de DST, Aids e Hepatites Virais da Sesa/ES, a médica Sandra Fagundes também alerta sobre a necessidade de manutenção da intervenção medicamentosa e do diagnóstico precoce.
Atualmente, estão disponíveis 26 Serviços de Atendimentos Especializados (SAE) em HIV, Sífilis e Hepatites Virais, distribuídos em todo o Estado, para a realização do tratamento e acompanhamento de pessoas vivendo com HIV/Aids. Além disso, contamos com 44 Centros de Testagem e Aconselhamento (CTA). O resultado, em muitas vezes, sai em meia hora e pessoa é aconselhada a procurar um centro e começar logo a medicação, enfatiza.
Sandra adianta que o Estado está cada vez mais investindo em trabalhos especiais nos casos em que o paciente é considerado de baixa adesão, ou seja, fica mais de 100 dias sem retirar os medicamentos nos SAEs.
Há uma ação conjunta feita por médicos, psicólogos e assistentes sociais. Entramos em contato com os pacientes para saber o motivo da baixa adesão. Muitos não vão ao centro buscar os remédios porque não têm condições de pagar a passagem de ônibus, por exemplo. Além disso, estimulamos os encontros realizados no Centro de Referência de Vitória desenvolvidos pela Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids, a RPN +. Nessas reuniões, muitos conseguem relatar o preconceito, os problemas de autoestima e são estimulados a continuar com recurso terapêutico. Além disso, são debatidas questões relacionadas à Política Social de pessoas vivendo com o vírus. É importante conhecer os seus direitos, explana.
A especialista comemora os bons índices do Estado em relação ao combate à doença. Nosso coeficiente de mortalidade está em 5%, um número bem menor do que a média do Brasil, que é de 5,5%. Além disso, também diminuímos em 16% o número de casos de pessoas que vivem com Aids. Tudo graças à excelente adesão ao tratamento, complementa, lembrando que a pessoa só está desenvolvendo Aids quando suas células T-CD4+ (as responsáveis pelo sistema imunológico) são contabilizadas abaixo de 350 ou quando desenvolvem as chamadas infecções oportunistas.
Fui infectado em 1995 e, na época, vivi um processo de negação. Escondi os exames e decretei que iria morrer. Comecei a fazer atrocidades, como me drogar e beber muito. Entrei em um processo de autodestruição.
Trabalhava no Hospital São Lucas e, como sou Técnico de Análises Clínicas, trabalhava retirando sangue dos pacientes. Era uma situação desconfortável, pois tinha medo que, com a minha condição, amedrontasse os usuários. Vivi momentos de terror, faltando ao trabalho, tirando licença saúde por vários anos e me negando a fazer o tratamento.
Quando relatei a doença para a minha chefe, consegui apoio e forças para continuar lutando, mesmo sabendo que sofria preconceito no meu ambiente de trabalho. Em 2001, comecei a ter infecções oportunistas repetidamente e vi que era hora de começar a luta contra o HIV. Demorei demais em me cuidar, acho que por pulsão de morte.
Então, iniciei com os remédios. Os efeitos colaterais eram ruins, quase insuportáveis, mas a vontade de ficar vivo era maior. Fui muito bem acolhido no Hospital das Clínicas pelos voluntários que fazem o trabalho da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids, a RPN +. Eles foram essenciais para que continuasse com a terapia. Hoje faço parte da militância que incentiva pessoas a tomarem seus remédios e amarem suas vidas.
O coquetel é uma dádiva, a única chance de me manter vivo e me agarro a isso com unhas e dentes. Hoje tenho um companheiro soronegativo há três anos, vivemos juntos e nos amamos muito. Sou indetectável e a nossa relação é segura. Sei que ele ficará bem e saudável.
Levo uma vida tranquila. Amo trabalhar, curtir meus amigos, fazer passeios no interior e jogar vôlei na praia. Não morri, como tinha medo. Pelo contrário, aprendi a amar mais quem eu sou.
(Sidney Parreiras de Oliveira, 49 anos, morador de Vitória - Representante Estadual e Municipal da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids, a RPN +)
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