Publicado em 26 de maio de 2021 às 09:16
A reputação deles não é das melhores. Volta e meia são chamados de antissociais, de potenciais atiradores em massa, de fascistas. Para piorar, acabaram ganhando uma denominação cafona. São os gamers. >
Em meio a tantas ilações injustas, uma excentricidade une uma parcela considerável desses admiradores de joguinhos -o hábito de bufar de raiva em frente a uma tela de computador ou de TV enquanto aperta botões coloridos para tentar passar de fase. A respiração pesa, o sovaco molha e a boca se enche de lamúrias e profanações, num ritual que não parece nada saudável a olho nu. >
Antes que alguém lance o argumento de que esses jogos dificílimos são coisa do passado, de uma época em que fliperamas dificultavam a jogatina para exigir mais fichinhas, é bom assinalar que games desafiadores estão na última moda. >
Mas por que tantos de nós gostamos desses jogos eletrônicos difíceis? Antes de respondermos a esta pergunta, vale um pouco de contexto. >
>
O game "Hades", do pequeno estúdio americano Super Giant, desbancou o favorito "The Last of Us 2" e levou o prêmio de melhor jogo do ano no festival South by Soutwest, o SXSW, deste ano. Levou também os troféus de melhor indie e melhor jogo de ação no último Game Awards, o Oscar dos jogos eletrônicos. No Bafta Games, foi premiado pelo design, arte e narrativa, além de ter sido eleito o melhor jogo do ano pela premiação britânica. >
O jogo é considerado um "roguelike", subgênero de games que tem como principais características os cenários gerados aleatoriamente, a repetição e a alta dificuldade -se você morrer na fase final, prestes a zerar, já era, volta para a primeira fase. >
O número de "roguelikes" é grande entres os jogos independentes. "Dandy Ace", por exemplo, é um título brasileiro que tem tido uma recepção boa pela crítica e pelo público. >
E agora o subgênero dá um salto grande, em direção aos AAA, o universo blockbuster. >
"Returnal" é um dos principais lançamentos deste primeiro semestre para PlayStation 5 e traz elementos que costumam ser raros entre os "roguelikes" tradicionais, como gráficos poderosos, em 3D, e uma narrativa robusta, com ares hollywoodianos. >
Os "roguelikes" são herdeiros de "Rogue", jogo que surgiu na Idade da Pedra dos games, em 1980, e podia ser jogado no sistema operacional DOS, com gráficos paupérrimos -um morcego, por exemplo, era uma simples letra "B", de "bat", que se movia pelo cenário. O gênero angariou fãs e fez escola. Tudo aquilo com jogabilidade inspirada em "Rogue" que veio depois ganhou a alcunha de "roguelike". >
Pois bem, por que então essa onda de jogos difíceis? >
Em "Além do Princípio do Prazer", de 1920, o pai da psicanálise, Sigmund Freud, descreve uma brincadeira de uma criança de um ano e meio de idade. Era um menino comportado, obediente, mas que tinha um hábito perturbador de apanhar objetos e os atirar longe, "de maneira que procurar seus brinquedos e os apanhar, quase sempre dava bom trabalho", escreve Freud. E o rapazinho repetia o processo de arremessar e procurar, de novo e de novo, e se regozijava toda vez que encontrava o objeto. >
Repetição, desafio, gozo. As mesmas características de um game "roguelike". "Como, então, a repetição dessa experiência aflitiva, enquanto jogo, se harmonizava com o princípio de prazer?", perguntava o austríaco, 60 anos antes de "Rogue" ser lançado. >
O psicanalista Thomas Kehl tenta explicar. "O gosto pela dificuldade está ligado à criação de uma tensão, que, quando satisfeita, parece potencializar o prazer. Daí vem o efeito catártico, o momento da vitória, uma bomba de serotonina", diz. >
Há também um outro fator que os games trazem e que completam a equação que tenta explicar o porquê do sucesso atual dos "roguelikes". Jogos têm histórias, ou seja, reproduzem fantasias. "A fantasia é inerente ao humano, a gente precisa sair do mundo e cada um sai do seu jeito", diz Kehl. Esse escape pode ser ver novela ou futebol, mas também pode ser controlar um personagem de videogame. >
Hoje em dia, um adulto exercer uma fantasia outrora considerada infantil -vendo filme da Marvel ou brincando de patrulheiro espacial num game- é bem mais aceito socialmente do que na época de Freud. >
Em "Returnal", a mecânica de tentar, morrer, repetir e vencer é sabiamente aproveitada pela narrativa. Na história, uma patrulheira espacial greco-americana tem um pouso forçado no planeta Atropos -mesmo nome de uma moira na mitologia grega, responsável por decidir como os humanos deverão morrer. >
"Returnal" brinca com conceitos de tempo e espaço, o que permite um loop temporal. Toda vez que Selene morre derrotada por criaturas alienígenas, ela volta para o início da jornada. >
"Outros jogos são sobre sobrevivência. 'Returnal' é sobre morrer para poder progredir, morrer para saber o que fazer e o que não fazer na próxima tentativa", diz Gregory Louden, diretor de narrativa. "Sim, eu diria que é um jogo difícil, mas muito gratificante." >
Luis Fernando Tashiro, diretor da Mad Mimic, estúdio que desenvolveu o "roguelike" brasileiro "Dandy Ace", conta que começaram a trabalhar no jogo antes do hype, mas o sucesso de "Hades" foi uma grata surpresa. >
"Eu sinto que hoje o pessoal dos 25 aos 30 anos tem menos tempo para jogar, e um 'roguelike' você joga uma horinha e dá para parar", diz Toshiro. Os millennials são também a geração da nostalgia, "esse pessoal veio dos jogos antigos difíceis, e o 'Dandy Ace' traz um pouco disso". >
Segundo o streamer veterano Eduardo Benvenuti, do canal BRKsEDU, o principal motivo da atual onda de "roguelikes" tem fundo econômico -tanto para o lado de quem produz quanto de quem consome. >
O primeiro é o custo-benefício. "Se um 'roguelike' for bom, você pode até enjoar, mas quando volta a jogar depois de um tempo, a experiência é nova, já que as fases são geradas de forma aleatória", diz. Como esse tipo de jogo -muitas vezes uma produção indie- não costuma ser tão caro quanto um superlançamento de console, o bolso do gamer-sofredor agradece e a serotonina sai mais em conta. >
A ironia é que esses jogos difíceis para o jogar "são menos desafiadores para produzir", afirma o streamer. >
"Em vez de ter que fazer um arco narrativo de horas e horas, o 'roguelike' permite que um estúdio pequeno faça um game de uma hora, mas que possa ser repetido inúmeras vezes. E aí os caras podem focar muito mais a experiência de gameplay, a criação de inimigos, de cenários, numa coisa mais caprichada.">
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta