Publicado em 3 de outubro de 2019 às 16:17
Antes de qualquer juízo de valor sobre suas qualidades técnicas, é preciso fazer um parênteses em relação a Sócrates (que está em cartaz nos cinemas do Estado): trata-se de um dos filmes mais viscerais, humanistas e emblemáticos do cinema brasileiro desde Cidade de Deus (2002). >
Os dois filmes têm muito em comum. Ambos, por exemplo, fazem uma radiografia seca, quase naturalista, de adolescentes perdidos em busca de afirmação social. Sócrates também é produzido por Fernando Meirelles, mesmo diretor do longa que recebeu quatro indicações ao Oscar em 2003.>
Passado o impacto que é assistir ao drama de estreia do promissor Alexandre Moratto, o cinéfilo mais atento pode captar as várias referências que o realizador usou para a construção narrativa de Sócrates. Há elementos do cinema social de Louis Malle, como a busca pela sobrevivência de Adeus, Meninos (1987), ou mesmo as citações mais óbvias, como François Truffaut com Os Incompreendidos (1959), especialmente na contestação social de seus arcos dramáticos.>
Há, também, um flerte com Moonlight (2016), com a mesma transformação por que passa um homem negro, pobre e gay em busca de suporte afetivo. Sócrates, porém, é mais seco e menos poético do que a obra de Barry Jenkins.>
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A trama do longa de Moratto é simples. Sócrates (Christian Malheiros, excepcional) se vê perdido após a morte repentina da mãe. Sem emprego, dinheiro, lugar para morar e nenhum aporte familiar, ele precisa enterrar a matriarca, começar a trabalhar e aceitar a sua sexualidade. >
Tudo, claro, embalado por uma cidade de Santos sombria, opressora e de poucas oportunidades para o recomeço. Uma sociedade retrógrada, conservadora e marcada pelos machismo, homofobia e racismo. Quase que uma radiografia do Brasil atual, comandado por uma extrema-direita raivosa e disposta a aniquilar as conquistas sociais das minorias.>
Em bate-papo com A GAZETA, Alex Moratto falou sobre a experiência em retratar um anti-herói marcado por tantas mazelas. Tive muito orgulho em fazer esse filme e retratar pessoas que raramente são representadas nas telas. O que mais falta no mundo é empatia, filosofa, complementando a resposta em tom humanista.>
Com esse filme, acredito que criamos empatia tanto em frente da câmera, quanto por trás, na forma que produzimos a obra com jovens de situações periféricas.>
Sócrates é um projeto praticamente amador. Foi rodado com poucos recursos, com atores e técnicos recrutados na ONG santista Instituto Querô. Por isso, talvez, a trama seja impregnada por verdades, pois foi criada por quem realmente vive os dilemas da periferia. >
A paixão do diretor pelo social vem de longa data. Trabalhar com o instituto foi muito gratificante, porque fui voluntário quando tinha 19 anos. Sempre tivemos um sonho de fazer um filme juntos, numa oficina para os jovens, e encontramos o perfeito projeto para essa parceria, explica.>
O longa-metragem traz um intimismo que reflete a formação artística do próprio Moratto. Filho de pai americano e mãe brasileira, Alex imprime em Sócrates um pouco da identidade que conquistou trabalhando como assistente de direção em Hollywood. >
De Ramin Bahrani, com quem trabalhou no excelente Adeus (2008), por exemplo, vem a busca de um homem querendo se encontrar em uma sociedade que não está disposta a aceitá-lo.>
Sócrates surpreendeu ao receber três indicações ao Independent Spirit Awards (2019), o Oscar do cinema independente, feito que só duas produções brasileiras conseguiram: Central do Brasil (1998) e Cidade de Deus (2002). >
O projeto foi ainda mais além, vencendo na categoria Someone to Watch Award, voltado para jovens promessas do cinema independente que merecem ser conhecidos.>
O longa de Moratto não teria a mesma força sem a presença magnética de Christian Malheiros (que concorreu ao Spirit ao lado grandes nomes de Hollywood, como Ethan Hawke e Joaquin Phoenix). O garoto, que também é destaque na série Sintonia, da Netflix, hipnotiza somente pelo olhar.>
As cenas em que confirma a sexualidade do protagonista - na companhia de Maicon (Tales Ordakji) -, ou mesmo a sua angustiante busca por comida, são cruas e filmadas com maestria pela câmera observadora do jovem realizador, que está trabalhando em seu novo projeto: Sete Escravos, sobre o tráfico de pessoas.>
Trabalhar com Christian (Malheiros) foi especial porque ele tem um talento impressionante, mas, acima de qualquer coisa, a escuta dele é excepcional, sabendo transformar direção em ação. Ele tem treino no teatro, então trabalhamos para fazer a interpretação chegar ao ponto que é vista na tela, revela Moratto.>
Ah, sim: você deve estar imaginando que o nome do personagem é Sócrates apenas por conta de uma homenagem ao famoso jogador do Corinthians e da Seleção Brasileira nas décadas de 1970 e 1980. Na verdade, é muito mais do que isso.>
O famoso filósofo grego de mesmo nome defendida que as pessoas só conseguem viver melhor após avaliarem o seu interior. Só assim, poderiam conseguir a desejada paz. A jornada em busca de dignidade do personagem de Malheiros passa por isso...>
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