Publicado em 17 de outubro de 2020 às 10:25
A indicação de militares para a direção da ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), organismo ligado à Casa Civil, pode criar desequilíbrio entre a proteção de dados e a vigilância estatal, bem como comprometer a independência do órgão, avaliam especialistas.>
Formada para auxiliar na formação da cultura de proteção de dados pessoais dos cidadãos, a recém-criada autoridade ganhou três coronéis da reserva do Exército em um quadro de cinco pessoas.>
Na quinta-feira (15), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) nomeou Waldemar Gonçalves Ortunho Junior, atual presidente da Telebras, Arthur Pereira Sabbat, atualmente no GSI (Gabinete de Segurança Institucional), e o engenheiro Joacil Basilio Rael para mandatos mais longos, de quatro a seis anos.>
Para os mandatos mais curtos, de dois a três, foram designadas Miriam Wimmer, diretora de Serviços de Telecomunicações no Ministério das Comunicações, e a advogada Nairane Farias Rabelo Leitão, única representante do setor privado.>
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Os nomes precisam passar por sabatina no Senado, que já pode ocorrer na próxima semana.>
Especialistas em proteção de dados afirmam que o anúncio de militares no quadro não é uma surpresa, embora a quantidade tenha chamado atenção quando comparado a parâmetros internacionais.>
Como a Folha mostrou, na quinta-feira (15), um levantamento do Data Privacy Brasil que analisou estruturas administrativas do gênero nas economias mais desenvolvidas do mundo, só encontrou militares em autoridades similares na Rússia e na China.>
"Três ex-militares em um quadro de cinco é incomum, não conheço [nenhuma autoridade com essa formação]. Sendo ex-militar ou não, é importante que o foco seja a independência e a privacidade", diz o israelense Omer Tene, diretor na IAPP (Associação Internacional de Profissionais de Privacidade), uma das maiores certificadoras de profissionais do ramo no mundo.>
Além de regulamentar cerca de 16 pontos da Lei Geral de Proteção de Dados, em vigor desde setembro, a autoridade terá a função de ajudar na interpretação da legislação, auditar e fiscalizar o aplicação das normas de privacidade em qualquer empresa pública e privada.>
Essa lei foi criada para assegurar o cidadão de que seu nome, endereço, CPF e seus dados sensíveis, como biometria, gênero e religião, sigam princípios de proteção à privacidade, sem abusos de empresas privadas ou estatais.>
"A composição da autoridade é majoritariamente de pessoas com conhecimento sobre ciência da computação e segurança da informação. Para eles, a proteção do direito do cidadão é uma novidade", diz o advogado Danilo Doneda, que participa do conselho da ANPD.>
Para ele, a presença militar gera risco de maior condescendência a eventuais propostas de aumento vigilância. "Órgãos de inteligência do governo tentarão fazer seu trabalho, e a proteção de dados promovida pela ANPD deveria fazer justamente o contraponto.">
É importante ressaltar que uma autoridade do tipo não tem acesso privilegiado a dados de cidadãos. Pelo contrário, ela deve zelar para que sejam protegidos.>
O que é visto com receio por uma série de especialistas do setor ouvidos pela Folha não é uma inaptidão técnica, mas a mentalidade militar de proteger a segurança nacional sob o aspecto da vigilância ou de dificultar o acesso à informação.>
Seguindo a lei, o máximo que uma autoridade pode fazer é investigar como os outros tratam os dados das pessoas. Ela investiga o setor privado ou público, detentores de bancos de dados, quando receber denúncia ou elementos comprovados para desconfiar do uso de dados.>
"Há preocupação com o perfil dos nomes indicados para a ANPD, independentemente de seus méritos e competências. Abre-se uma fragilidade no sistema de proteção de dados. É o órgão que deveria fiscalizar o tratamento de dados também do governo", diz a advogada Estela Aranha, presidente da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB-RJ.>
O órgão já não tem total autonomia sendo vinculado à Presidência da República. Para a advogada, tais indicações podem levar a um cenário de ainda menor independência, com o órgão nascendo já capturado por um de seus principais entes regulados, que é o próprio Estado.>
Outro ponto levantado por analistas é a forma com que outros países possam encarar o Brasil para a transação internacional de dados, um ponto que exige segurança jurídica elementar na economia digital.>
"O país tem que ser reconhecido para o fluxo internacional de dados pessoais, e um dos quesitos que a Comissão Europeia exige é que a autoridade seja independente. Não pode existir esse questionamento da ANPD", diz Felipe Palhares, sócio do Barbosa Mussnich Aragão Advogados.>
O setor privado havia sugerido nomes de profissionais considerados competentes para a função, dois deles foram acatados: o de Miriam Wimmer, com reconhecida atuação no campo, e o do coronel Arthur Pereira Sabbat, do GSI, um dos responsáveis pela elaboração da estratégia de cibersegurança do país, também atuante no debate público de proteção de dados.>
"Esperamos que esse conjunto [de pessoas] seja do diálogo, eles são os primeiros intérpretes da lei. Existem 16 menções a regulamentos e regulamentações que precisam ser feitas, e a gente espera que venham a partir de consultas públicas", diz Sergio Paulo Gallindo, presidente da Brasscom (Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação).>
A Folha de S.Paulo conversou com Arthur Sabbat, Miriam Wimmer e Nairane Farias Rabelo Leitão, que não irão se pronunciar antes da sabatina no Senado. A reportagem não conseguiu contatar os outros dois nomeados.>
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