É advogado. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP)

STF e o freio na indústria de processos contra companhias aéreas

No dia 26 de novembro, o ministro Dias Toffoli determinou a suspensão nacional de todos os processos que tratam da responsabilidade das companhias aéreas por atrasos e cancelamentos

Vitória
Publicado em 04/12/2025 às 04h50

O artigo de hoje trata de dois tipos de atraso. O primeiro é o atraso estrutural do próprio sistema jurídico brasileiro, que ainda acredita que uma lei consumerista de cláusulas amplas e um Judiciário abarrotado produzirão melhores serviços. O segundo atraso é literal — o dos voos — e deu origem a uma indústria de milhões de processos contra companhias aéreas.

Em 26 de novembro, esses dois mundos colidiram na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que suspendeu, em âmbito nacional, o julgamento de ações envolvendo responsabilidade aérea por atrasos e cancelamentos.

Os números escancaram o problema. Segundo a Associação Brasileira de Empresas Aéreas (Abear), o Brasil concentra cerca de 98,5% de todas as ações do mundo contra companhias aéreas. Isso deixa o conjunto dos outros 194 países com apenas 1,5% desse tipo de litigância. A desproporção é inegável: no Brasil há uma ação para cada 227 passageiros transportados; nos Estados Unidos, o maior mercado global, uma para cada 1,2 milhão. E não há indícios de que nossas empresas ofereçam serviço inferior — avaliações internacionais mostram, inclusive, desempenho acima da média.

A raiz da hiperlitigância, portanto, não está em falhas operacionais das companhias, mas nos incentivos jurídicos disfuncionais presentes no sistema brasileiro. Esse fenômeno é impulsionado por uma combinação conhecida de operadores do Direito: o Código de Defesa do Consumidor (CDC), com suas cláusulas abertas e elásticas, e os Juizados Especiais Cíveis (JECs), que permitem demandas sem custas e com risco mínimo. Em boa parte da jurisprudência, essa equação transforma o litígio em uma espécie de aposta unilateral — se o consumidor ganha, recebe indenização; se perde, praticamente nada acontece.

O resultado acumulado ao longo de décadas não foi a melhoria dos serviços, mas o aumento de custos operacionais, o encarecimento das passagens e uma maior concentração de mercado. As empresas passaram a conviver com uma previsibilidade negativa: provisionar incontáveis ações cujo desfecho varia caso a caso, resolvidas sob critérios muitas vezes subjetivos, e com ampla margem para interpretações divergentes.

É nesse contexto que surge o “segundo atraso”: a tentativa, tardia, de correção pelo próprio Judiciário.

No dia 26 de novembro, o ministro Dias Toffoli determinou a suspensão nacional de todos os processos que tratam da responsabilidade das companhias aéreas por atrasos e cancelamentos — o chamado Tema 1.417 da Repercussão Geral. A medida, pleiteada pela Azul Linhas Aéreas e pela Confederação Nacional do Transporte (CNT), busca conter a multiplicação de decisões divergentes que criam insegurança jurídica para consumidores e empresas.

O que está em exame vai muito além de escolher se prevalece o CDC ou o Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) e as Convenções Internacionais de Varsóvia e Montreal. O Supremo terá de decidir entre dois modelos:

  1. um sistema baseado em subjetividade, que permite interpretações amplas e indenizações pouco previsíveis; e 
  2. um sistema de regras claras, adotado pela maior parte dos países desenvolvidos, com critérios objetivos, hipóteses fechadas de responsabilidade e limites tarifados. 

Sob a aplicação predominante do CDC, consolidou-se um ambiente de insegurança: decisões que desconsideram excludentes clássicas, como caso fortuito ou força maior (por exemplo, mau tempo), e que tratam atrasos de minutos como danos morais presumidos. Esse cenário estimula comportamentos oportunistas e a chamada “advocacia predatória”, além de sobrecarregar o sistema judicial e aumentar custos do setor.

Passagem aérea, aeroporto
Viagens. Crédito: Pixabay

Já o CBA e as Convenções Internacionais — que regulam a aviação comercial global — estabelecem um modelo racional: critérios objetivos, parâmetros uniformes e previsibilidade suficiente para que o mercado funcione, atraia novos investimentos e reduza parte relevante do chamado Custo Brasil. Não se trata de restringir o acesso à Justiça, mas de ajustar incentivos para que a judicialização não se converta em distorção econômica.

A decisão do ministro Toffoli é drástica, mas necessária para impedir que a divergência jurisprudencial continue a gerar insegurança e desequilíbrio. Agora, cabe ao STF enfrentar o atraso institucional brasileiro. Se optar pela prevalência das convenções internacionais e por um sistema de responsabilização mais previsível, a Corte poderá finalmente desmontar a engrenagem da litigância de massa, alinhar o Brasil aos padrões mundiais e pôr fim à anomalia judicial brasileira.

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