Engenheiro químico e sociólogo, CEO da TroianoBranding. Escreve sobre o papel estratégico das marcas para a economia e a sociedade

Entre malandros e caxias

Políticos e religiosos estão muito mais avançados do que nós, profissionais de mercado, na compreensão dessa complexa realidade “molecular”

Vitória
Publicado em 05/02/2025 às 03h00

Ler diariamente jornal, ou ver TV e navegar em redes sociais, me fez lembrar que o pêndulo de nosso país continua oscilando entre os dois modelos de identidade nacional. Somos uma molécula com esses dois átomos: malandros e caxias.

Não inventei nada! Apenas me lembrei de que é mais verdadeiro do que nunca o vaticínio do nosso sociólogo Roberto Da Matta no seu “Carnaval, malandros e heróis” (1983). Parece que, quanto mais passa o tempo, cada vez somos mais parecidos com nós mesmos. Acho que o mais saudável não é tentar se libertar dessas raízes primordiais que dão forma ao ego nacional. Mas saber lidar com elas da melhor forma.

Quem é o malandro? Um ser totalmente deslocado das regras formais. Avesso à dureza do trabalho, individualizado pelo modo de andar, falar, vestir-se. No limite, o malandro pode vir a ser o delinquente. O que é apenas uma possibilidade não muito remota, mas, cá entre nós, sem dúvida uma possibilidade.

Mas, no seu lado luz, o malandro é o que é mais livre para ser criativo, para ir além das fronteiras sancionadas socialmente. Eu me lembro de um delegado importante e dedicado nos dizer o seguinte, depois de um roubo de celular que complicou nossa vida: “Eles estão sempre um pouco mais à nossa frente na maligna criatividade com que essa gente opera”.

E o caxias? É aquele comprometido com o reforço da ordem social e deseja mantê-la tal como ela é. Tem muito apego à disciplina e a comportamentos pautados pelo que é socialmente aceito. No limite, quando esses traços se acentuam, o caxias vira o trouxa, o que também é apenas uma possibilidade. Mas ele também é banhado em luz. O que ele é, como ele vive, a resistência à transgressão é o que evita a explosão da anomia na sociedade. É a raiz da estabilidade. E nesse sentido é pura luz.

Mas há um terceiro átomo na molécula. O renunciador, segundo o sociólogo. Aquele que “deve abandonar o mundo material, viver para o grupo, deixando de lado seus interesses egoísticos. Não pode mais contar com as leis, decretos e hierarquias de seu grupo original” (sic). Quando trabalhei na aculturação do fantástico 4Cs da Young & Rubicam para o Brasil e América Latina, esse perfil de pessoas eram tratados como Os Esperançosos. Nada os impede de acreditar de que há uma recompensa que virá em algum momento.

Hoje não acredito mais que estamos diante de tipos absolutamente puros, ou seja, em átomos que não dialogam e não trocam “elétrons”. Acredito muito mais em interfaces, tangências e várias espécies de combinação entre eles. E, quem sabe, gente que abandona um dos tipos para viver outro. Chico Buarque já nos disse isso há um bom tempo.

“Mas o malandro pra valer

Não espalha

Aposentou a navalha

Tem mulher e filho e tralha e tal

Dizem as más línguas que ele até trabalha

Mora lá longe e chacoalha

Num trem da Central”

Em 99% do tempo, somos essa composição “molecular”, com dosagens distintas dos três átomos.

Ópera do Malandro
Cena do filme "Ópera do Malandro", dirigido por Ruy Guerra, uma adaptação cinematográfica da peça musical homônima de Chico Buarque de Hollanda. Crédito: Divulgação

Mesmo assim, a revelação do Da Matta continua irretocável, quando falamos da originalidade de nossas raízes, da matriz genética que deu forma à nossa argila humana.

Bem que eu gostaria de medir qual é, atualmente, a dosagem de cada uma das três na composição de nossa população. Porém, nunca me atrevi a fazê-lo. Algo me diz, no entanto, que caxias e renunciadores são predominantes. Indicadores? Os trens, metrôs, ônibus apinhados, com corpos amontoados às 7 da manhã e às 5 da tarde. A ginástica financeira no fim do mês. Templos absolutamente repletos e musicais. Um certo ar geral de aceitação resignada e complacência. Nada que lembre a violência do episódio que vimos no filme “Parasita”.

Políticos e religiosos estão muito mais avançados do que nós, profissionais de mercado, na compreensão dessa complexa realidade “molecular”. Eles têm uma fina sensibilidade tátil que nossos artefatos de análise e nosso afastamento do mundo aí fora ainda não garantem a mesma compreensão.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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