Pois é, para continuarmos discutindo o crime organizado e como a estratégia do abafamento pode funcionar bem, precisaremos dar um pequeno salto às Guerras Indígenas nos EUA do século XIX, quando ficou popular uma frase atribuída ao General Sheridan: “índio bom é índio morto”.
Cem anos depois, quando o Rio era a capital do Brasil e não tínhamos nada parecido com as facções criminosas, a frase e a ideia foram apropriadas por autoridades brasileiras para aplicá-las a pequenos delinquentes aleatórios. Formaram-se grupos de extermínio que saíam pela noite executando suspeitos e deixando o corpo na rua, geralmente com um cartaz onde estava desenhada uma caveira com duas tíbias cruzadas e as letras EM (esquadrão da morte), para que todo mundo visse.
A ideia de que bandido bom é bandido morto (“e enterrado de pé, para não ocupar muito espaço”) sempre foi popular e políticos surfavam nessa onda, empresários achavam interessante financiar essa atividade e os cidadãos em geral adoravam ler as manchetes de alguns jornais especializados nesse tipo de notícia.
Sempre houve quem, aqui e ali, se opusesse e protestasse em vão. O promotor Hélio Bicudo tentou condenar os assassinos em São Paulo, o promotor Elias Faissal (ES) conseguiu condenações a penas que superavam os mil anos para alguns acusados, mas essas ações isoladas, sem apoio nem continuidade, se mostravam infrutíferas.
Em 1965, foi fundada no Rio de Janeiro a Scuderie Detetive LeCoq, ostensivamente com finalidades filantrópicas, mas a adoção do mesmo símbolo que aparecia junto às vítimas dos grupos de extermínio provocava certa dúvida... Em 1984 foi criada no Espírito Santo outra instituição semelhante, mas juridicamente independente, e as suspeitas quanto à sua atuação continuaram até que o promotor de Justiça Luiz Renato Azevedo da Silveira e o então delegado de Polícia Civil Francisco Badenes apreenderam e remeteram ao Ministério Público Federal muita documentação interna comprometedora. A lista dos que merecem crédito é muito extensa e eu fatalmente esqueceria alguém importante, então vou parar por aqui.
Era 1996 e o autor destas mal traçadas linhas tomou posse como procurador da República com essa papelada em cima da sua mesa. Havia duas alternativas. A primeira, já tentada sem sucesso, seria apurar cada morte (sem a menor estrutura para isso) e condenar os executores um a um. Escolhi a outra.
Havia prova documental mais do que suficiente de finalidades ilícitas e caráter paramilitar, únicos casos em que uma associação poderia ser proibida (Constituição da República, art. 5º, XVII e XIX). Então, uma ação de dissolução da Scuderie foi assinada por todos os procuradores da República no Espírito Santo. Foram dez anos para transitar em julgado a sentença que mandou fechar a associação, mas o efeito prático já havia sido obtido havia muito tempo.
Seria muito bom que os assassinos tivessem sido individualmente punidos. Dissolver aquela associação também era muito importante, mas a ação judicial em si e sua repercussão na mídia fez o mais importante: levantou o véu da hipocrisia e obrigou cada cidadão a se olhar no espelho.
O apoio político, econômico e da opinião pública desapareceram, porque ninguém acreditou que EM realmente significasse “Esquadrão Motorizado”. Não precisa haver matado ninguém: o fato de haver pertencido à LeCoq se tornou um estigma para políticos e ninguém mais quer sair na foto ao lado de um “presunto”.
Não houve um enfrentamento direto contra os assassinos. Nenhuma prisão foi realizada, até porque não houve ações criminais. Seguiu-se uma estratégia indireta, também chamada oblíqua, que explicaremos em uma coluna futura, porque esta aqui já ultrapassou qualquer limite. O fato é que o Espírito Santo se livrou do esquadrão da morte sem sequer novas operações policiais ou investigações.
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