Ao observar as recentes mudanças anunciadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), não pude deixar de refletir sobre o impacto que uma reestruturação tão profunda pode ter em uma instituição tão emblemática. A decisão de reduzir as divisões em Genebra de dez para apenas quatro, com um foco central nos "sistemas de saúde", parece uma tentativa de ajustar-se às lições duras e urgentes da pandemia de Covid-19.
Testemunhei a complexidade burocrática que permeia uma organização desse porte, e as justificativas para essas mudanças, baseadas em "eficiência operacional" e "foco estratégico", trazem um misto de esperança e preocupação.
Será que tal simplificação realmente conseguirá fortalecer a equidade em saúde, ou correremos o risco de enfraquecer a capacidade de resposta a crises tão diversas e multifacetadas? Essas dúvidas me levam a pensar sobre o equilíbrio delicado entre a agilidade administrativa e a profundidade necessária para abordar as desigualdades globais em saúde.
A nova arquitetura organizacional prioriza sistemas de saúde resilientes, alinhando-se a um discurso pós-pandêmico que reconhece a primazia da atenção primária e da cobertura universal à saúde. Não por acaso: a fragmentação dos sistemas sanitários mostrou-se uma ameaça à segurança global.
A OMS argumenta que a centralização em quatro divisões — incluindo áreas como emergências em saúde pública e determinação social da saúde — permitirá maior agilidade na alocação de recursos e na coordenação de políticas. Há, aqui, um reconhecimento tácito de que a complexidade administrativa pode ser um obstáculo à ação rápida em cenários de crise, com o qual concordo inteiramente.
No entanto, ao pensarmos em governança global, há que se atentar para os riscos de uma visão excessivamente instrumental. Reduzir estruturas técnicas pode significar, na prática, estreitar o escopo de temas críticos, como saúde mental, doenças negligenciadas — comumente presentes no Sul Global — ou os impactos das mudanças climáticas na saúde, questões que demandam abordagens intersetoriais e especializadas.
Dessa reforma anunciada, chamo a atenção para três pontos que serão mais bem elucidados à medida que as mudanças sejam implementadas, ou seja, o futuro dirá.

Primeiramente, há que se reconhecer que uma reforma era necessária, mas, ao realizá-la sob a pressão dos cortes de financiamento, questiona-se se a ênfase na "eficiência" não reflete princípios de ajustes neoliberais, onde a lógica de custo-benefício pode prevalecer sobre as necessidades de investimento sustentável em saúde pública. E aí reside o primeiro ponto de atenção.
Outro ponto sensível é a tensão entre centralização e descentralização. Enquanto Genebra se enxuga, a OMS promete fortalecer escritórios regionais e nacionais — teoria que parece responder à demanda por maior protagonismo do Sul Global na governança em saúde.
Mas será que a autonomia regional será acompanhada de recursos financeiros e capacidade decisória? Historicamente, as estruturas regionais da OMS enfrentam subfinanciamento e dependência de doações vinculadas a interesses de países ricos. Sem uma redistribuição real de poder e orçamento, a retórica da descentralização pode mascarar uma concentração ainda maior de influência. Esse é o segundo ponto de atenção.
A reforma surge em um contexto de crises entrelaçadas: além da pandemia, guerras, colapso climático e recessões econômicas pressionam sistemas de saúde já frágeis. Neste cenário, o terceiro ponto de atenção é se a OMS, além de se reestruturar, conseguirá rever seu modelo de financiamento — ainda dependente, em 80%, de contribuições voluntárias, muitas vezes atreladas a prioridades de doadores. A coerência entre forma e financiamento será decisiva: de nada adianta simplificar divisões se a captação de recursos continuar refém de interesses fragmentados. É o velho dito popular: quem paga, manda.
Há, de certo, potencial positivo na reforma. E, se há alguém capaz de liderar essa mudança, é, sem dúvida, o atual diretor-geral, Dr. Tedros Adhanom, pela sua competência e grande capacidade diplomática. Mas o sucesso dependerá de como os princípios declarados se traduzirão em mecanismos concretos. Se a reorganização for acompanhada de um orçamento condizente com as demandas, houver participação democrática na governança e transparência nas decisões, poderá pavimentar caminhos para uma saúde global mais justa, que não repita as hierarquias de um mundo cada vez mais polarizado e desigual.
É preciso destacar também que, ao mudar a estrutura em Genebra, há um espelhamento em todas as estruturas regionais e nacionais. Ou seja, uma reação com efeito dominó. A reestruturação em Genebra, portanto, afeta a todos nós, e a forma como as políticas de saúde serão redesenhadas a partir daqui mudará os próximos anos da saúde em cada pequeno município. Por isso, acompanhar o que acontece por lá importa a cada um de nós.
Por fim, é preciso reconhecer que, desde sua criação, a OMS tem sido um farol em meio a mares revoltos. Nesse momento de crise e adaptação, urge que ela se remodele sem perder seu foco principal: a realização do mais alto nível possível de saúde para todas as pessoas, sem deixar ninguém para trás.
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