Doutora em Epidemiologia (UERJ). Pós-doutora em Epidemiologia (Johns Hopkins University). Professora Titular da Ufes. Aborda nesta coluna a relação entre saúde, ciência e contemporaneidade

Canetas emagrecedoras: o que a retenção de receita nos revela sobre saúde, consumo e desigualdade

Entender que padrões estéticos não representam saúde e que medicamentos só devem ser utilizados com acompanhamento profissional são pontos essenciais

Publicado em 15/05/2025 às 04h00

A recente decisão da Anvisa de exigir a retenção de receita médica para a prescrição de medicamentos como a semaglutida, originalmente indicada para o tratamento do diabetes tipo 2, não se resume apenas a uma resposta técnica frente a notificações de efeitos adversos. Essa medida reflete uma dimensão mais profunda da medicalização do corpo, do peso e da própria ideia de saúde, cada vez mais capturada por interesses estéticos e mercadológicos e por padrões corporais inalcançáveis.

Desde a sua aprovação pela Anvisa, mais de 1.100 eventos adversos já foram notificados até 2024, sendo cerca de um terço relacionados ao uso fora da indicação clínica. Esses números revelam um alerta. Mas, para além das estatísticas, é preciso olhar para os determinantes sociais e econômicos que sustentam esse uso distorcido.

A medicalização da magreza não é nova. Já na Roma Antiga, banquetes eram marcadores de status, e há registros de práticas que buscavam manter o corpo perfeito. No cristianismo medieval, o jejum representava tanto penitência quanto contenção do corpo. Nos séculos seguintes, cortes europeias adotaram regimes dietéticos como símbolos de autocontrole e sofisticação. O avanço da farmacologia apenas refinou esse processo: das anfetaminas do século XX às substâncias que modulam neurotransmissores, o foco sempre esteve no controle do corpo — quase nunca na promoção integral da saúde.

Mais recentemente, os agonistas do GLP-1 — como a semaglutida — reforçaram a antiga promessa de emagrecimento rápido e sem esforço. Embora a base científica para o uso da semaglutida no tratamento do diabetes e da obesidade seja sólida, trata-se de uma tecnologia que exige critérios clínicos rigorosos, prescrição responsável e acompanhamento contínuo. A banalização desse medicamento em vídeos de influenciadores e sua circulação como mercadoria estética escancaram o esvaziamento do conceito de prescrição médica e a hipertrofia da medicalização cotidiana.

Há também implicações éticas e distributivas inegáveis. O desabastecimento vivido por pessoas com diabetes que necessitam da medicação para controle glicêmico é resultado direto do uso fora da indicação da bula (off-label), voltado ao emagrecimento. Uma tecnologia desenvolvida para atender a uma necessidade de saúde pública foi capturada pela lógica de consumo, que transforma o corpo magro em sinônimo de sucesso e valor social. A decisão da Anvisa, nesse sentido, tenta restabelecer a fronteira entre o uso racional e o consumo desenfreado.

Tecnologias em saúde devem servir às pessoas que delas realmente necessitam. A prioridade precisa ser o cuidado integral, com equidade e justiça social. Ainda que a cirurgia bariátrica siga como padrão-ouro para determinados casos de obesidade, o acesso a essa e a outras estratégias terapêuticas precisa estar garantido no SUS. Com o fim da patente da semaglutida previsto para 2026, espera-se que a produção nacional de genéricos possibilite a ampliação do acesso, especialmente para as populações mais vulneráveis.

Enquanto isso, o uso massivo e, muitas vezes, indiscriminado do medicamento exige vigilância. Nos ensaios clínicos, os efeitos adversos relatados foram, em sua maioria, leves — náuseas, vômitos, constipação. Contudo, com o uso ampliado e fora das indicações clínicas, vêm sendo observados efeitos mais graves, como pancreatite, cálculos biliares, hipoglicemia e disfunções renais. Não existe medicamento isento de risco. E é papel do profissional de saúde avaliar, caso a caso, se o benefício supera o risco.

O Estado tem responsabilidade central neste debate. Não se trata apenas de regular o uso de um fármaco, mas de enfrentar os determinantes sociais que empurram milhares de pessoas para soluções farmacológicas imediatistas, reforçadas por um mercado que lucra com a insatisfação corporal. É preciso garantir o acesso com equidade e segurança — e, sobretudo, ampliar o debate público sobre o que significa, de fato, promover saúde.

Relatos de uso da semaglutida para o tratamento da obesidade e para emagrecimento vêm se multiplicando nas redes sociais
Uso da semaglutida para o tratamento da obesidade e para emagrecimento. Crédito: Shutterstock

Como nos lembra a Organização Mundial da Saúde, saúde não é apenas a ausência de doenças, mas o completo bem-estar físico, mental e social. No entanto, é preciso ir além: saúde é um processo coletivo, determinado por condições dignas de vida, acesso a direitos básicos e liberdade para existir como indivíduo, em nossa diversidade corporal.

A saúde pública não pode estar à margem desses processos. Precisamos, sim, de regulação, mas também de educação crítica em saúde, que fortaleça a autonomia informada da população. Em uma sociedade que cultua a magreza como valor, reafirmar que saúde é muito mais que isso — e que, fundamentalmente, é um direito, e não uma mercadoria — é um ato político.

A trajetória histórica nos mostra que, embora os alvos farmacológicos mudem, o desejo pelo corpo magro persiste. As chamadas “canetas emagrecedoras” são o capítulo mais recente de uma narrativa antiga. Mais do que respostas rápidas, esse fenômeno exige reflexão coletiva: o que estamos alimentando, afinal, na nossa relação com o corpo, a saúde e a sociedade?

Entender que padrões estéticos não representam saúde e que medicamentos só devem ser utilizados com acompanhamento profissional são pontos essenciais para darmos ao conceito de saúde a sua devida importância. Enquanto corpos fora do padrão forem tratados como problema e a magreza como virtude, medicamentos continuarão a ser desviados de sua função original: tratar. A retenção de receitas é um passo, mas o verdadeiro salto é cultural. Precisamos resgatar a saúde como direito coletivo, não como privilégio.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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