É juiz do Trabalho, mestre em Processo, especialista em Direito do Trabalho e estudante de Economia. Neste espaço, busca fazer uma análise moderna, crítica e atual do mercado e do Direito do Trabalho

Trabalho olímpico: as cobranças por resultado no mundo corporativo

Empresas que ignoram o risco ou recriminam o adoecimento mental beneficiam-se da transferência desse custo para o Estado (INSS) e da fácil substituição da mão de obra no mercado brasileiro

Publicado em 03/08/2021 às 02h00
Homem estressado no trabalho: pressão profissional pode levar até a suicídios
Transtornos mentais e comportamentais são a terceira maior causa de afastamento do emprego. Crédito: Shivmirthyu/Pixabay

Na última semana, duas notícias vindas de Tóquio trouxeram profundas reflexões para o mundo do trabalho, situações que nos fazem questionar se a sociedade do século XXI pode ou não ser considerada mais evoluída que em gerações passadas.

A primeira diz respeito à belíssima medalha de prata conquistada pela skatista Rayssa Leal, de 13 anos. A vitória em si foi incrível, um grande exemplo a ser seguido pelas milhares de jovens e a prova de que o esporte evolui e engrandece. O problema veio quando um deputado federal, ao ver a medalha, resolveu defender o trabalho infantil.

É como se pensasse assim: “ora, se uma criança genial de 13 anos pode se tornar a maior esportista do mundo, por que um garoto pobre de 13 anos não pode lavar pratos em um restaurante, cortar cana ou entregar comida por aplicativo?”

A ideia é tão absurda para os dias de hoje que assemelha esses pensantes “modernos” aos industriais ingleses do século XIX. Ao invés de apresentar todos os argumentos contrários, que, diga-se de passagem, foram os propulsores do próprio Direito do Trabalho, limitamo-nos em citar, pasmem, um senhor de escravos norte-americano daquele século, quando visitou uma fábrica em Bradford, no Reino Unido, e assim falou a três industriais: “Sempre me considerei infeliz pelo fato de ser dono de escravos, mas nunca, nas Índias Ocidentais, pensamos ser possível haver ser humano tão cruel que exigisse de uma criança de 9 anos trabalhar 12 horas e meia por dia, e isso, como os senhores reconhecem, como hábito normal” (HUBERMAN, 1974, p. 192).

É importante ressaltar que o Brasil conta, segundo dados da Pnad 2019, com 1,8 milhão de crianças trabalhando, o que representa 4,6% de toda população infantil. Longe de ser um dado feliz, verifica-se uma boa evolução, pois eis que em 2016 5,5% das crianças encontravam-se em condição de trabalho infantil. Houve um recuo, portanto, de 16,8%. Isso demonstra que a adoção de programas sociais de transferência de renda, bem como o Programa de Erradicação do Trabalho infantil (Peti) têm surtido bons efeitos.

A meta brasileira é erradicar o trabalho infantil até 2025, conforme comprometeu-se com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (item 8.7 – www.un.org). De outro lado, o país conta com mais de 14 milhões de adultos desempregados. Incluir crianças no mercado apenas agravaria o problema.

A segunda situação que trouxe reflexões sérias para o mundo do trabalho foi a desistência da ginasta estadunidense Simone Biles em competir na final individual da ginástica artística para cuidar de sua saúde mental. A pressão que atletas de ponta sofrem é gigantesca, enquanto o sofrimento é calado, oculto. Biles resolveu expor à comunidade global seu problema, mostrando o que realmente importa ao ser humano, acima de qualquer conquista: sua saúde.

No meio corporativo atual, as cobranças por resultados não ficam longe da intensidade sofrida por Biles, mesmo que o trabalhador não esteja, nem de longe, no nível de uma medalhista olímpica. Ao ser admitido já é bombardeado com metas, programas de resultado, “incentivos” psicológicos para aumentar sua performance e toda aquela lavagem cerebral para achar que os ótimos resultados lhe fazem um vencedor e, caso contrário, um “loser”.

Tais cobranças levam inevitavelmente ao adoecimento. Estatisticamente, transtornos mentais e comportamentais são a terceira maior causa de afastamento do emprego. Apenas entre 2012 e 2016 o INSS concedeu 668.402 benefícios previdenciários por essa causa, atentando-se que o número de subnotificações deve ser muito superior, dado o estigma e o receio de trabalhadores em admitirem o problema e perderem seus postos de trabalho. Segundo a OMS, 264 milhões de pessoas sofrem depressão, o que causa, ao menos, a perda de US$ 1 trilhão na economia mundial, por ano.

Empresas que ignoram o risco ou recriminam o adoecimento mental beneficiam-se da transferência desse custo para o Estado (INSS) e da fácil substituição da mão de obra doente, decorrente da farta disponibilidade que permeia o mercado brasileiro. O próprio Taylor (novamente nos reportando a personagens do séc. XIX), pai da administração científica, cujos estudos focavam no aumento de produtividade e lucros, tinha notáveis preocupações com a fadiga e a moral dos trabalhadores. A aplicação de sua teoria (Princípios da Administração Científica) permitiu severa redução na jornada de trabalho e substancial aumento salarial dos operários de chão de fábrica.

Enfim, incentivar o trabalho infantil e recriminar o adoecimento mental, decorrente da cobrança desenfreada de trabalhadores por resultados, tal qual a recusa pela vacina contra a Covid-19, são faces do negacionismo à ciência, à efetiva evolução humana. Talvez esse negacionismo ignóbil represente, por si só, algum outro tipo de distúrbio psíquico.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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