Professora da Ufes, coordenadora da Cátedra Sérgio Vieira de Mello ACNUR/ONU para refugiados e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ufes e da ANDHEP

Sem o mínimo de igualdade, democracia está sempre incompleta

Frase é do professor Oscar Vilhena Vieira (FGV, SP), citado no relatório  “Democracia Inacabada: Um retrato das desigualdades brasileiras”, sobre a necessidade de redução das desigualdades

Publicado em 11/08/2021 às 02h00
democracia
Democracia no Brasil: sistema político reflete as desigualdades. Crédito: Pixabay

Nesta segunda-feira (9) foi publicado o relatório da Oxfam Brasil “Democracia Inacabada: Um retrato das desigualdades brasileiras”, com uma análise profunda sobre a situação que estamos vivendo no Brasil desde 2015, com o aumento das desigualdades, o empobrecimento da população e uma tentativa em curso de minar nossa democracia.

O relatório mostra o vínculo inevitável entre desigualdades e democracia, fazendo uma pergunta crucial: “A redução das desigualdades é essencial para a democracia?”. O funcionamento da democracia está intimamente ligado a uma justa distribuição de bens (não só materiais, mas também bens no sentido de direitos, saúde, moradia e educação) e riquezas, como adverte o professor Oscar Vilhena Vieira (FGV, SP), citado no relatório da Oxfam: “As instituições públicas tenderão a reforçar os mecanismos de desigualdade, e a democracia irá se degenerando, até entrar em crise. Assim, não seria incorreto dizer que, sem um padrão mínimo de igualdade, a democracia sempre estará incompleta, pois não será capaz de refletir o interesse de todos os atores da sociedade de maneira equânime”.

O que o relatório da Oxfam pretende deixar claro a partir de dados empíricos é que o problema no Brasil não é o regime democrático e, sim, as desigualdades sociais e econômicas que só vêm aumentando no país. Interessante, ainda, é a advertência feita no relatório de que não é somente o regime político democrático que garante o fim das desigualdades, é preciso que a própria democracia garanta a igualdade dentro do sistema político.

Isso quer dizer, então, que há necessidade de representação paritária nos parlamentos e nos cargos representativos, por meio de cotas para mulheres, negros e pardos, pessoas LBTQIA+ e todos os outros espectros da sociedade brasileira que se diferenciem do tradicional homem branco.

Se o problema é estrutural, é preciso que a estrutura do regime político brasileiro seja quebrada por meio da inclusão de todos os grupos sociais existentes no país, com base nos resultados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios do IBGE (PNAD), que deveria ter sido feita em 2020 e não foi realizada por determinação do governo federal.

A importância, portanto, do direito ao voto amplo e irrestrito (sufrágio universal) consagrado pela primeira vez na história do Brasil pela Constituição de 1988, deve ser complementada pelo direito de ser eleito e participar de forma direta da elaboração de políticas públicas no país.

Veja-se, por exemplo, que apesar da importância das comunidades indígenas historicamente no Brasil, hoje só temos uma deputada federal representando as comunidades autóctones brasileiras, com a única e primeira mulher indígena eleita para a casa, Joenia Wapichana (Rede/RR). A insuficiência dessa representação ficou clara durante a votação do Projeto de Lei 490/2007, na sessão da Comissão de Constituição e Justiça, quando a fala da deputada Joenia foi interrompida pela presidente da CCJ, a deputada Bia Kicis, aliada do presidente da República. Sem direito a fala, o projeto vai sendo aprovado sem que sequer a comunidade mais interessada, ali representada por Joenia, fosse devidamente ouvida.

Além dos cargos eletivos, também são como formas de participação democrática os Conselhos de Políticas Públicas, os quais em sua maioria foram extintos ou esvaziados pelo atual governo federal. Atualmente, somente permanecem em efetivo funcionamento os conselhos estaduais e municipais atuantes em regiões onde os governantes não adotaram a política de esvaziamento das instituições democráticas pelo presidente da República.

De acordo com a Oxfam, em seu relatório, “no final de 2018, havia 40 conselhos ou comissões nacionais de políticas públicas no Brasil, sendo que 75% deles foram criados após a promulgação da Constituição Federal de 1988, e 45% entre 2001 e 2016. Quanto à espécie normativa de criação dos conselhos nacionais, 40% foram criados por lei, 35% por meio de decreto e 25% a partir de outros tipos normativos”.

Depois da posse, no início de 2019, o presidente Jair Bolsonaro, por meio do decreto nº 9.759/2019, extinguiu todos os conselhos que não foram criados por lei. Os que foram criados por lei foram sendo esvaziados, com a inclusão de representantes do governo em sua maioria, como é o caso do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA).

A conclusão do relatório é que democracia brasileira vem sangrando desde 2015 por força de uma forte crise financeira e da aprovação da PEC do teto de gastos em 2016. Mas o golpe derradeiro está na reforma que, além do voto impresso, inclui a proposta de criação do “distritão” e do fim da cota de candidatas mulheres por partido, reforma que está sendo pautada “goela abaixo” da Câmara dos Deputados pelo seu presidente.

Sobre a reforma eleitoral, o relatório é bem contundente: “A proposta de estabelecimento do distritão nas eleições legislativas altera o modelo proporcional de lista aberta existente no Brasil desde a década de 1940 para o modelo majoritário de voto na escolha de parlamentares. Este modelo tende a beneficiar nomes já conhecidos – principalmente parlamentares que há exercem mandatos – dificultando a renovação dos quadros políticos ao favorecer candidaturas já conhecidas, incluindo as de parlamentares buscando a reeleição.”

Um cálculo feito pela Oxfam demonstra que com a adoção do distritão e do fim das cotas para mulheres nas eleições, se estivéssemos na eleição de 2018, por exemplo, a deputada Joenia Wapichana não teria sido eleita e o número de mulheres e pessoas negras eleitas seria ainda menor.

Um outro ponto preocupa a Oxfam: a votação de uma reforma tão importante para a democracia brasileira em plena pandemia de Covid-19. Uma proposta que visa reduzir direitos de participação estará passando a toque de caixa e sem a devida inclusão de atores importantes nas deliberações políticas, tolhendo a possibilidade de a população ir às ruas para manifestar-se contrariamente às propostas em votação.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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