Professora da Ufes, coordenadora da Cátedra Sérgio Vieira de Mello ACNUR/ONU para refugiados e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ufes e da ANDHEP

País que respeita a democracia, respeita os valores de sua Constituição

Uma Constituição representa a luta de um povo, representa e indica os valores que hão de guiar os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário de um país

Publicado em 13/11/2019 às 04h00
Atualizado em 13/11/2019 às 04h00
Crise e protestos na Bolívia. Crédito: Divulgação
Crise e protestos na Bolívia. Crédito: Divulgação

Nas últimas semanas, vimos no Brasil, no Chile, na Bolívia e mesmo nos Estados Unidos um embate entre os valores máximos da democracia, inscritos nas respectivas constituições entrarem em conflito com interesses políticos, financeiros e até mesmo militares, sendo que em alguns casos o texto constitucional prevaleceu, em outros, como na Bolívia, o discurso militarista foi vitorioso.

Diante de tanta confusão, algumas pessoas vieram me perguntar o que realmente estava em jogo nos debates sobre julgamento em segunda instância ou em última instância pelo Supremo no Brasil, o pedido desculpas do presidente do Chile, a renúncia do presidente na Bolívia e as audiências preparatórias para um eventual processo de impeachment no Estados Unidos; a minha resposta em todos os casos foi simples, esperemos que se cumpra as constituições.

Nem todos podem estar de acordo com os textos constitucionais, mas a Constituição de uma país representa mais do que um simples pedaço de papel impresso com letras minúsculas, uma Constituição representa a luta de um povo, representa e indica os valores que hão de guiar os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário de um país. A Constituição norte-americana, por exemplo, existe desde 1789 e foi alterada somente 27 vezes, sem que com isso os valores fundamentais do povo fossem desrespeitados. Isso quer dizer que um país que respeita a democracia, respeita os valores inscritos em sua constituição e só a altera quando essa alteração tiver amparo social, histórico e valorativo.

Não se pode mudar a constituição de um país toda vez que o seu texto deixar de agradar quem está no poder. Em especial, não se pode alterar uma cláusula pétrea toda vez que ela impedir o uso do sistema político, judiciário ou executivo da forma como um grupo achar melhor para o país. Isso por que, há valores democráticos mínimos que estão garantidos por meio de cláusulas pétreas nas constituições, esses são valores sobre os quais uma nação se funda, são seus pilares de sustentação. Ou seja, nem mesmo uma reforma pode subvertê-los.

O que a princípio, então, pode parecer a completa instauração do caos, na verdade, é o clamor social pelo cumprimento das constituições. Se, no Brasil, o constituinte preocupou-se em escrever expressamente que a prisão só se daria após o trânsito em julgado da decisão final condenatória, é por que o direito de liberdade é garantido a todos juntamente com a presunção de inocência.

Lembremos que antes da Constituição de 1988 vivíamos em uma ditadura no país, acusados não tinham direito à ampla defesa, ao habeas corpus, a defensores públicos, além de serem torturados nas delegacias e prisões. Ora, não é à toa que se estabeleceu como valor mínimo a presunção de inocência do acusado até o julgamento final do processo.

Da mesma forma, no Chile, após o término da ditadura, o povo esperava que os valores sociais pactuados em sua Constituição em 1980, que foi submetida a um plebiscito e entrou em vigor gradualmente e alcançou pleno vigor em 1990, fossem respeitados. Vemos, assim, que os valores sociais lá pactuados pelo povo, não são termos aleatórios e sim o objetivo de uma nação que foi oprimida por anos de ditadura. Hoje inicia-se um novo processo constituinte no Chile, a fim de dar voz aos anseios da população, demonstrados nas ruas nos últimos dias. Afinal, uma nova constituinte é uma resposta mais democrática do que várias reformas aleatórias da constituição.

Na Bolívia, pelo contrário, o que se viu no último domingo foi o culminar de violações à constituição, seja pelo desrespeito à vedação do quarto mandato pelo presidente, seja a recomendação em forma de advertência do alto comando militar para a renúncia de Evo Moralles. Ora, se em um momento ele reconhece que houve fraude nas eleições de 20 de outubro passado e já convoca novas eleições, a sua renúncia antecipada joga o país numa crise sem precedentes. Mas há dois legados importantíssimos de Moralles que não podem ser negados: o primeiro é a própria constituição boliviana e, o segundo, o fato de ele ser o primeiro indígena eleito presidente daquele país.

Referendada pela população em janeiro de 2009, há mais de dez anos, a Constituição da Bolívia reconhece o estado plurinacional, atribui poder e terra aos povos indígenas tradicionais do país. Esse é um marco fantástico na história do direito constitucional da humanidade. Por isso, o passo de Moralles deste domingo talvez tenha sido a forma por ele encontrada de pacificar o país e impedir o retrocesso. Mas a tomada de decisões em quartéis, a prisão de juízes, tudo isso nos lembra muito um passado da América Latina que não queremos de volta...

E nos Estado Unidos, quando já pensávamos que a população tinha aceito o jeito de governar por Twitter do seu presidente, o Congresso norte-americano inicia uma investigação que poderá, eventualmente, levar ao impeachment de Trump. Trata-se, mais uma vez, de o cumprimento de regras constitucionais, ou seja, a lei fundamental de um país fazendo o seu papel de colocar pesos e contra-presos no agir dos poderes executivo, legislativo e judiciário, garantindo ao cidadão a preservação da democracia.

Enfim, o que nos diferencia do passado é justamente o respeito às constituições democráticas, e isso não devemos perder de vista.

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