Em o “Mito da Caverna”, Platão cria um interessante diálogo entre o personagem Sócrates e o seu jovem aluno Glauco, no qual o mestre convida o seu pupilo a imaginar um cenário em que um grupo de pessoas vive acorrentado pelas pernas e pescoço em uma caverna desde a infância.
O grupo, em razão da falta de mobilidade, tem uma visão limitada ao grande paredão de rochas à frente dele, onde são projetadas sombras das pessoas, animais e objetos que se locomovem e são transportados em uma colina que se ergue por trás, iluminados através de uma fogueira existente entre a caverna e a colina.
Com a visão limitada ao paredão de rochas, o grupo toma como verdadeiras as imagens ali projetadas, julgando serem a própria realidade ali refletida. Um dos prisioneiros consegue se libertar dos grilhões e acessar a parte externa da caverna, onde passa a ter contato com a luz do sol que, de início, ofusca-lhe a visão e causa-lhe dor, mas aos poucos o permite enxergar e reconhecer as coisas que antes via apenas através das sombras, reconhecendo-as aos poucos em seu aspecto real e na sua verdadeira dimensão.
Agora adaptado à luz do sol e imbuído da alegria que o conhecimento do mundo real lhe proporcionou, o ex-prisioneiro decide regressar à caverna a fim de transmitir aos seus companheiros o conhecimento adquirido, enfrentando forte incômodo com a passagem da luz para a escuridão novamente.
De volta ao interior da caverna, relata aos prisioneiros as características do mundo exterior e expõe que o que eles veem como verdade não passa de um mundo de ilusões, pois aquelas imagens não refletem a realidade do mundo exterior. As informações não são bem recebidas pelo grupo que, taxando-o de louco, decide matá-lo em razão do perigo que a sua insanidade poderia gerar.
Nessa parábola, Platão expressamente compara a situação dos prisioneiros a dos homens em seu estado de ignorância e expõe a tendência do ser humano de reforçar as crenças até então incorporadas. O sol é comparado ao conhecimento, cujo contato inicial gera incômodo e pode ser considerado como loucura por aqueles que vivem no mundo das sombras (ignorância).
Correlacionando a alegoria platônica com o racismo no sistema de justiça, podemos concluir que o operador do Direito que insiste em ignorar os processos raciais em nosso país encontra-se, por assim dizer, dentro da “caverna”, trabalhando com base em um cenário que corresponde a meras sombras no paredão à sua frente.
Na sua acepção estrutural, o racismo é o modo normal com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e familiares em nossa sociedade. Essa estrutura social conta com um sofisticado mecanismo que procura invisibilizar o racismo, acabando por gerar sérias violações de direitos fundamentais. E o que não é enxergado, reconhecido, não pode ser enfrentado eficazmente.
Nessa perspectiva, destaca-se o papel da sociologia, da filosofia e da história, que podem auxiliar os operadores do Direito na tarefa de desvelar a existência desses mecanismos ocultos que fazem perpetuar o racismo estrutural no Brasil. Assim como na metáfora de Platão, a vida dentro da caverna gera nos operadores do Direito a falsa percepção da realidade ou a invisibilidade do racismo.
A subida ao exterior da caverna e o acesso ao mundo real, nesta reflexão, podem ser comparados ao caminho de aquisição do conhecimento através da conexão do Direito com as ciências sociais, a filosofia e a história. Essas proporcionam o conhecimento da realidade – aqui na presente análise recortada para o racismo estrutural – e com isso permite a construção de mecanismos para o enfrentamento do quadro de grave violação de direitos fundamentais.
Toda e qualquer manifestação de racismo é, por si só, uma violação do direito fundamental à igualdade, mas no sistema de justiça criminal evidencia-se, também, o quadro de violação sistemática do Direito à liberdade das pessoas negras no Brasil, em razão do evidente perfilamento racial nas abordagens policiais.
O direito fundamental à liberdade tem sido sistematicamente violado no Brasil com as abordagens policiais pautadas no racismo. O ministro do STJ Rogério Schietti Cruz se propôs a enfrentar a questão de maneira corajosa por ocasião do julgamento do RHC 158.580-BA.
Abalizando-se em análises sociológicas e filosóficas, realizadas em sua historicidade, o relator expôs a origem e as causas do racismo estrutural no Brasil, desvelando os seus mecanismos mais imperceptíveis e conclamando os operadores do sistema de justiça criminal a uma verdadeira tomada de consciência sobre a necessidade de uma reflexão sobre o papel que ocupam na manutenção da seletividade racial.
As consistentes reflexões realizadas em seu julgamento demonstram como a mentalidade escravista, cujos efeitos perduram até hoje, conduz ao controle sobre os corpos negros no espaço público por meio da repressão criminal. Portanto, o que era “simplesmente” um caso jurídico, que tratava de ilicitude de provas colhidas na realização de busca pessoal pelos policiais no réu, foi “iluminado” com o conhecimento revelado pelas ciências sociais, pela filosofia e história, permitindo que fosse reparada a grave violação ao direito fundamental à liberdade daquele réu.
Concluímos, assim, que os profissionais do Direito precisam “sair da caverna”, que bem poderia ser representada por seus gabinetes e escritórios, e acessar a realidade através de uma visão multidisciplinar proporcionada pelas demais ciências sociais, fazendo a necessária conexão entre elas, a fim de viabilizar a garantia dos direitos fundamentais sistematicamente violados em nosso país. E nisso o ministro Rogério Schietti é um exemplo a ser seguido.
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