O projeto de lei da anistia (PL nº 2.858/22 da Câmara dos Deputados) pretende isentar de responsabilidade jurídica qualquer pessoa que tenha participado de “manifestações públicas” desde 30/10/2022, mesmo que a manifestação pública tenha sido violenta, atentado contra a ordem democrática e configurando os crimes de golpe de Estado e abolição violenta do Estado democrático de direito previstos nos artigos 359-M e 359-L do Código Penal (CP), como no caso das “manifestações” do 8 de janeiro.
Qualquer jurista que não esteja envolvido com as narrativas políticas que envolvem esse projeto identifica nele pelo menos duas inconstitucionalidades: a primeira, que a competência do Poder Legislativo para conceder anistia não pode ser exercida de maneira genérica, de forma a subtrair do Poder Judiciário a sua função jurisdicional de aplicar a lei penal aos autores de crimes, importando em violação à cláusula pétrea constitucional da separação de poderes prevista no art. 60, §4º, II da Constituição Federal de 1988 (CF/88); a segunda, que a prática de crimes contra o Estado democrático de Direito, tal como previsto nas modificação introduzidas no CP pela Lei nº 14.197/2021, não pode ser objeto de anistia pelo Poder Legislativo, por uma questão de coerência constitucional, eis que a CF/88 determina que crimes contra a ordem constitucional são inafiançáveis e imprescritíveis, como, inclusive, já decidiu o próprio Supremo Tribunal Federal (STF).
Assim, é claro que o PL nº 2.858/22 vai gerar uma crise com o Poder Judiciário, porque sua aprovação atentaria contra o pacto constitucional que ancorou na independência desse poder republicano um importante instrumento para a garantia da democracia e de direitos fundamentais de todos os brasileiros.
O principal argumento utilizado pelos defensores do projeto é que sua aprovação é necessária para corrigir uma suposta distorção de penas exageradas do STF aos participantes do 8 de janeiro: parece um argumento falho, pois, sabidamente, a competência do Poder Judiciário para a dosimetria das penas não é livre dos limites impostos pelo próprio legislador na Lei nº 14.197/2021.

Se o Poder Legislativo realmente pretende tornar as penas impostas aos condenados pelo 8 de janeiro mais “justas”, como dizem os defensores do projeto, o melhor caminho para tanto seria diminuir as penas fixadas na Lei nº 14.197/2021, o que seria futuramente aplicado aos já condenados, por força do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica previsto no art. 5º, XL da CF/88.
Portanto, se a pretensão do Legislativo é tornar as penas impostas pelo STF mais “justas”, não é preciso colocar a Constituição e a democracia brasileiras em risco: pode o parlamento chamar para si o ônus de discutir com a sociedade a diminuição de penas para quem atenta contra a ordem constitucional democrática no Brasil, medida legal esta que, acaso aprovada, será aplicada aos condenados do 8 de janeiro por determinação da própria Constituição.
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