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É professor de Relações Internacionais da UVV

Impasses no acesso a vacinas expõem falhas da política externa do Brasil

Para que o país acelere a vacinação e resolva suas crises sanitária e econômica, precisa levar a sério o multilateralismo e parar de gerar crises diplomáticas

  • Daniel Carvalho É professor de Relações Internacionais da UVV
Publicado em 26/03/2021 às 02h00
Chegada a São Paulo de voo com 2 milhões de doses da vacina Oxford/AstraZeneca
Chegada a São Paulo de voo com 2 milhões de doses da vacina Oxford/AstraZeneca. Crédito: Aurélio Pereira/MS

O imbróglio para importar e produzir a quantidade de vacinas para o combate à Covid-19 ilustrou, como poucas vezes, o impacto que as relações exteriores do Brasil têm no dia a dia da população. Elas, que raramente têm visibilidade nas eleições, são ofuscadas por saúde e segurança públicas e emprego. O problema é que a política externa é uma política pública, isto é, uma diretriz para enfrentar um problema público. A diferença é que ela visa a saciar as necessidades nacionais de acordo com as oportunidades internacionais.

Há 25 anos, o Brasil entrou em uma missão para aumentar o acesso a medicamentos importados. A Lei 9.299/96 previa o licenciamento compulsório de medicamentos em casos de emergência de saúde pública. Em 2000, os EUA acionaram o Brasil na OMC, pois entendiam que ela contrariava o TRIPS, tratado sobre propriedade intelectual do qual o Brasil faz parte.

Equilibrando o respeito às regras e a necessidade de medicamentos, os países entraram em acordo e a queixa foi retirada. Foi assim que os governos FHC (2001) e Lula (2007) quebraram patentes de remédios contra a Aids. O Itamaraty ajudara a saciar as necessidades nacionais usando as oportunidades internacionais. O resultado: acesso a medicamentos e economia de US$1,2 bilhão.

Tivesse o atual governo admitido a necessidade de combater a pandemia do coronavírus e aproveitado as oportunidades internacionais dadas pelo multilateralismo, talvez o Brasil já teria quantidade maior de vacinas.

Manter Ernesto Araújo no Ministério das Relações Exteriores indica as prioridades que norteiam tal política pública. Crítico do multilateralismo, Araújo já disse que a pandemia deve ser enfrentada “por nações individuais” e negou a responsabilidade de órgãos multilaterais de coordenar o combate a um problema que atinge a todos. Além disso, suas declarações e as do deputado federal Eduardo Bolsonaro criaram mal-estar com a China.

A tentativa de dar consumo à ala ideológica do governo e de criar um clima anti-China que pudesse abrir espaço para o 5G americano abalou relações que há tempos eram amistosas. Como resposta, o governo chinês afirmou que o único meio de adquirir as vacinas seria pelo governador João Doria, rival político do presidente da República.

Por fim, o alinhamento do atual governo com o ex-presidente dos EUA Donald Trump e o desejo de ingressar na OCDE mudaram o compromisso do Brasil com o licenciamento compulsório de medicamentos. O país passou a votar contra a medida na OMC e traiu a parceria que tinha com a Índia e outros países emergentes. Como resposta, a Índia complicou o acesso às vacinas da AstraZeneca.

A pandemia atingiu as prioridades do atual governo, que não parece ver na política externa uma política pública que sacie as necessidades nacionais conforme as oportunidades internacionais. Para o Brasil acelerar a vacinação e resolver suas crises sanitária e econômica, precisa levar a sério o multilateralismo e parar de gerar crises diplomáticas desnecessárias.

* Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta

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