Autor(a) Convidado(a)
É secretário Nacional de Políticas Penais do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). Procurador do Estado de Pernambuco

Defender um sistema penal seguro e justo não é ignorar o sofrimento das vítimas

Uma sociedade mais segura exige que o Estado seja capaz de agir em duas frentes: garantir que as penas sejam cumpridas com legalidade, dignidade e segurança e, ao mesmo tempo, amparar e reparar os danos para quem sofre as consequências da criminalidade

  • André de Albuquerque Garcia É secretário Nacional de Políticas Penais do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). Procurador do Estado de Pernambuco
Publicado em 25/07/2025 às 11h20

A defesa de uma punição justa, proporcional e eficaz remonta a pensadores como Cesare Beccaria, que em sua obra precursora "Dos Delitos e das Penas" propunha, em nome da dignidade humana, conceitos até então inovadores na execução penal. Dois séculos e meio depois, o Brasil do século XXI ainda enfrenta preconceitos e desafios graves para concretizar uma política penal tal como argumentava o pensador italiano em pleno século XVIII.

Comparando os sistemas penais mundo afora, a experiência comprova que organizá-los não é apenas uma necessidade humanitária ou jurídica, mas sim um imperativo prático.

A dimensão pragmática está na constatação de que não há sociedade segura sem um sistema penal controlado, com capacidade compatível com a quantidade de custodiados e apto a oferecer condições mínimas para o processo de reintegração social.

Seguindo esse ponto de vista pragmático, como em nosso país não há pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, ou de caráter perpétuo, quem cumpre sentença penal necessariamente retornará ao convívio social, o que implica dizer que deve o sistema (buscar) promover a recuperação desses indivíduos, ainda que nem todos estejam dispostos a isso.

Para tanto, devemos aperfeiçoar os mecanismos de reintegração social e de tratamento penal que estão previstos numa lei, por incrível que pareça, criada em pleno regime militar.

Nesse sentido, o Sistema Penal brasileiro permanece, em grande medida, superlotado, desorganizado e inseguro, em flagrante desacordo com a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984), em vigor há mais de quatro décadas. Essa lei prevê, entre outros direitos e deveres, as assistências materiais, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa ao custodiado, as quais, na prática, em muitos Estados, são precárias ou parcialmente asseguradas, resultando em um modelo que mais reproduz a violência do que contribui para sua superação.

Entre os pontos estruturais da LEP, destaca-se a obrigação de o preso trabalhar, não como punição, mas como parte de seu processo de reintegração. Essa perspectiva não apenas cumpre uma exigência legal e moral, mas também serve de estratégia efetiva para a redução da reincidência criminal, e assim impedir o cometimento de mais crimes com novas vítimas da violência. É dever do Estado, portanto, criar as condições necessárias para a oferta de trabalho nas unidades prisionais.

A implementação plena da LEP é exatamente o que propõem as metas fixadas pelo Plano Pena Justa, iniciativa do Governo Federal e do Conselho Nacional de Justiça que visa instituir uma cultura de governança, racionalizar o uso da privação de liberdade, promover a execução penal conforme os princípios constitucionais e, consequentemente, controlar as unidades penais.

Contudo, a reorganização do sistema penal e da execução da pena não deve ignorar a dor e o sofrimento das vítimas da violência. Pelo contrário.

Centro Prisional Feminino de Cariacica/Presídio
Centro Prisional Feminino de Cariacica/Presídio. Crédito: Fernando Madeira

Nesse aspecto, destaca-se o Programa Recomeçar, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que financia núcleos de acolhimento e apoio às vítimas e seus familiares em todo o país. Trata-se de uma política pública essencial que reconhece o sofrimento das vítimas, oferecendo-lhes cuidado, escuta, amparo psicológico, assistencial e jurídico.

Em complemento, entendemos que devemos instituir definitivamente um Estatuto de Proteção das vítimas da violência, consolidando normas esparsas e criando direitos protetivos tal como ocorre em outros países.

Uma sociedade mais segura exige que o Estado seja capaz de agir em duas frentes: garantir que as penas sejam cumpridas com legalidade, dignidade e segurança e, ao mesmo tempo, amparar e reparar os danos para quem sofre as consequências diretas e indiretas da criminalidade. Portanto, a organização do sistema penal e a proteção das vítimas não são agendas excludentes, pois são complementares e indispensáveis.

Excluir uma delas repetindo chavões e lugares comuns somente reforça preconceitos e não contribui para o esclarecimento da opinião pública.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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