Autor(a) Convidado(a)

Corpus Christi: negros e pobres são vidas e corpos do Senhor

Neste momento difícil, muito mais importante que enfeitar as ruas com tapetes para acolher o Santíssimo Sacramento é nos unirmos às vozes que gritam contra os regimes fascistas e racistas

  • Padre Kelder José Brandão Figueira
Publicado em 11/06/2020 às 09h00
Atualizado em 11/06/2020 às 09h01
Data: 20/02/2020 - ES - Vitória - Manifestação contra as mortes de jovens negros na periferia. Eles saíram do bairro da Penha e seguiram até a Chefatura de Polícia Civil, na Reta da Penha - Editoria: Cidades - Foto: Fernando Madeira - GZ
Manifestação contra as mortes de jovens negros na periferia, em Vitória. Crédito: Fernando Madeira

Uma das festas religiosas mais tradicionais e belas da fé cristã católica é a festa do Corpo e do Sangue do Senhor, a festa de Corpus Christi, que acontece na primeira quinta-feira, após a festa da Santíssima Trindade. Este ano não teremos a confecção dos tapetes e as procissões tradicionais.

Contudo, o amor ao Corpo de Cristo não se resume ou se esgota na solene liturgia do Seu Corpo e Sangue, com a confecção de tapetes ou procissões. As tradições que envolvem esta data só têm sentido se precedidas pela compreensão da Última Ceia, quando Jesus lava os pés dos discípulos, institui a Eucaristia e lhes ordena: “Façam isso em minha memória”.

São João Crisóstomo, Séc. V, nos ajuda a celebrar a solenidade do Corpo e do Sangue do Senhor neste tempo esquisito que estamos vivendo, imersos em uma crise sanitária, com a Covid-19, que já matou quase 40 mil brasileiros, expondo as entranhas das desigualdades, ameaçados pela sombra nefasta do fascismo:

“Desejas honrar o Corpo de Cristo? Não o ignores quando está nu. Não o homenageies no templo vestido com seda quando o negligencias do lado de fora, onde ele está mal vestido e passando frio. Ele que disse ‘Este é o meu Corpo’, é o mesmo que diz ‘tive fome e deste-me de comer’ e ‘quando o fizestes a um destes pequeninos irmãos, a mim o fizestes’ (Mt 25,40) ... que importa se a mesa eucarística está lotada de cálices de ouro quando teu irmão está morrendo de fome? Começa por satisfazer a sua fome e, depois com o que sobrar, poderás adornar também o altar.” (Homilia 50)

Como cristãos, não podemos abandonar os pobres à própria sorte e, muito menos, negar os fatos históricos. A pandemia afeta a todos, mas as condições para enfrentá-la são muito diferentes devido ao racismo estrutural impresso em nossa história. O acesso à saúde não é o mesmo entre negros e brancos, entre os pobres e as camadas médias e altas. Não à toa, o índice de mortes entre os negros é muito maior.

O que se passa e faz com que nossas maiores indignações sejam com o comércio fechado e com governantes que nos pedem para respeitarmos o isolamento social? Os idosos e os mais jovens negros e pobres podem morrer? Suas vidas valem menos?

O racismo mata. Mata nossa possibilidade de enxergar o negro como humano. A desigualdade mata pobres de fome e de doenças, e pode matar nossa capacidade de exercer a solidariedade.

Neste momento difícil, muito mais importante que enfeitar as ruas com tapetes para acolher o Santíssimo Sacramento é nos unirmos às vozes que gritam contra os regimes fascistas e racistas. É importante unirmos nossas vozes àquelas que gritam que o corpo negro açoitado e o sangue negro derramado são também o corpo e o sangue do Senhor.

O autor é vigário Episcopal para Ação Social, Política, e Ecumênica da Arquidiocese de Vitória

A Gazeta integra o

Saiba mais
racismo Corpus Christi

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.

A Gazeta deseja enviar alertas sobre as principais notícias do Espirito Santo.