A decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que impôs a Jair Bolsonaro o uso de tornozeleira eletrônica, deve ser lida como expressão de um processo penal em expansão, tensionado entre a contenção de riscos e a proteção de direitos fundamentais.
Fundamentada no artigo 319 do Código de Processo Penal, a medida insere-se no rol das chamadas cautelares pessoais diversas da prisão — instrumentos que, em tese, equilibram o princípio da presunção de inocência com a necessidade de preservar a eficácia processual.
No entanto, o que está em jogo transcende a técnica jurídica: trata-se da intervenção penal sobre um ex-presidente da República, ainda influente politicamente, no contexto de investigações sobre tentativa de golpe e articulação contra instituições democráticas.
A imposição da medida cautelar repousa em elementos que indicariam risco de fuga, obstrução da justiça e ameaça à soberania nacional, como diálogos com autoridades estrangeiras, pressões diplomáticas contra ministros da Corte e ações coordenadas para desacreditar o sistema eleitoral.
O fundamento cautelar, embora legalmente admissível, exige exame rigoroso de proporcionalidade, adequação e necessidade, sobretudo diante da gravidade simbólica que envolve restringir a liberdade de um ex-chefe de Estado sem condenação transitada em julgado. O processo penal, em sua matriz constitucional, não pode converter-se em instrumento de contenção política nem em substituto da responsabilização eleitoral ou institucional.
A decisão também desperta reflexões sobre o papel do Judiciário em contextos de crise democrática. Se, por um lado, o STF atua para proteger a integridade da ordem constitucional, por outro deve fazê-lo com cautela reforçada, sob pena de romper os próprios limites que sustenta.
Medidas cautelares não são instrumentos de pedagogia pública, mas mecanismos excepcionais, que só se legitimam quando claramente demonstrada a sua imprescindibilidade. Aplicadas em excesso, transformam o processo penal em instrumento de exceção. Aplicadas com parcimônia e rigor argumentativo, tornam-se garantias contra a inércia estatal.
Nesse cenário, o processo penal brasileiro revela suas ambivalências: enquanto pretende afirmar-se como instrumento racional de contenção e garantia, não raro se vê imerso em disputas políticas que desafiam sua legitimidade. O caso Bolsonaro, portanto, é um espelho de nossos dilemas institucionais: entre a defesa da democracia e o risco de instrumentalização da justiça, entre a legalidade das medidas e a sua legitimidade constitucional.
A crítica jurídica que dele emerge é necessária — não para absolver ou condenar, mas para lembrar que o devido processo legal, tão criticado por políticos populistas, continua sendo o mais importante limite entre o Estado de Direito e o estado de exceção.
Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.