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Publicado em 26 de novembro de 2025 às 15:16
A monja gosta de rock and roll. Às vezes, ela está mexendo nas redes sociais e escuta Pink Floyd, Yes e Beatles. "Não tenho lista de músicas. Porém é muito gostoso ouvir uma guitarra bem tocada, que vai naqueles agudos que parece que leva você para o céu", conta a prima de Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, do Mutantes, que já trabalhou iluminando alguns shows de rock. "Agora gosto mais da quietude, do silêncio". >
Cláudia Baptista de Souza teve uma vida como poucos. Estudou em colégio de freiras, se casou aos 14 anos, se separou aos 17, trabalhou como repórter, iluminou alguns shows de rock e experimentou a tríade sexo-drogas-rock and roll. Mas, aos 27 anos, descobriu o poder da meditação. Anos mais tarde, se tornou Coen, a monja mais famosa do Brasil.>
De família quatrocentona paulistana, filha de um empresário e de uma pedagoga, ela sempre foi uma questionadora. Na escola, questionou as freiras. Na vida, queria saber o sentido da existência. Buscando respostas, experimentou drogas. Provou e viu que não era nada disso que procurava. “Procurava por Deus e pelo sentido da existência. Fui encontrá-lo no silêncio das salas de meditação", diz.>
A menina que gostava de James Taylor, Yes, América, Pink Floyd e Deer Purple encontrou na meditação transcendental o sossego. Acompanhando os primos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, do Mutantes, conheceu o segundo marido, o americano Paul Weiss, iluminador roqueiro do cantor Alice Cooper. Com ele, mudou-se para Califórnia e viu a vida se transformar.>
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Separou-se, mudou para comunidade Zen Center Los Angeles e depois viveu enclausurada durante sete anos num mosteiro em Nagoia, no Japão. Chamada de Coen (Co quer dizer “Só” e En quer dizer “Círculo”), foi a primeira mulher de origem não japonesa a presidir a Federação das Seitas Budistas do Brasil, em 1997. Três anos depois, fundou a Comunidade Zen Budista, em São Paulo.>
A monja volta a Vitória para celebrar os 12 anos da Rede Abraço no Espírito Santo. Na palestra “Escutar com o Coração: uma Ética do Cuidado na Sociedade do Sofrimento", ela traz reflexões sobre escuta compassiva, ética em tempos de dor coletiva e sofrimento psíquico, além de abordar a importância das políticas públicas voltadas ao cuidado e ao acolhimento. "É preciso sair desse lugar de ficar julgando, comparando e ser capaz de ouvir para entender", diz a monja em entrevista ao SE CUIDA.>
O que a senhora vai abordar na palestra em Vitória?>
Vamos conversar se temos uma escuta compassiva. Nós realmente entendemos quem tá falando conosco, ou estamos julgando, ou respondendo antes da pessoa de terminar de falar. Como é que a gente sai desse lugar de ficar julgando, comparando e passa a ser capaz de ouvir para entender. Qualquer forma de diálogo é isso que precisamos, não de discussão ou debate, mas de diálogo. Para dialogar começa com o quê? Com a escuta. Temos que escutar o outro, entender e quando a pessoa está falando. Nós podemos querer falar, mas não enquanto a pessoa tá falando. Precisamos readquirir a capacidade da escuta amorosa e da escuta compassiva. Mas não é assim que a gente faz, respondemos de qualquer jeito, nem pensamos no que falamos. >
Estamos vivendo num modelo tão apressado... Qual é o caminho?>
Sentar-se em meditação é um caminho extraordinário para esse autoconhecimento, que não está julgando nada, tá apenas reconhecendo. Respira, inspira devagar e solta mais devagar ainda, tão lento e suave, como uma leve brisa de primavera. Depois inspira de novo, dá uma pequena pausa e solta devagar. Antes de falar, a gente vai passar a língua três vezes dentro da boca. O que eu falo é verdade? É bom e vai beneficiar a quem está ouvindo? Ou só vou falar o que não vai levar a lugar nenhum. >
Quando as pessoas te encontram, quais são os anseios delas e o que elas querem saber? >
A maioria vem agradecer, dizendo que salvei a vida dela. Muitos contam que durante a pandemia dormiam me ouvindo, que era a única coisa que acalmava. Recebo muitas palavras de gratidão. E algumas pessoas também falam: 'Monja, como é que eu faço? Estou com crise de ansiedade, sempre ansioso, não estou presente no momento'. Eu respondo: 'Respira, volta para o agora, sente o seu corpo. Alongue a coluna vertebral, abra o seu peito, o diafragma, tenha o coração aberto ao mundo, não se feche, não se limite, seja capaz de ouvir mais do que falar, perceber mais do que ser percebido. Porque tem gente que quer se exibir... Mais do que você se exibir é necessário perceber os outros.>
É preciso atenção na respiração...>
A gente trabalha com a respiração consciente para mudar os nossos estados emocionais alterados que podem ser raiva, ciúmes, inveja, síndrome do pânico, ansiedade... Tudo isso faz parte de estados alterados da consciência, porque o nosso estado natural é como o carro que está no ponto morto. A gente escolhe se vai para frente, ou para trás, se vai mais rápido ou devagar, mas é você que tem que estar no controle. E o nosso controle não depende dos estados emocionais das pessoas à nossa volta.
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Monja Coen
Monja
E por que que nós estamos cada vez mais ansiosos?
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O mundo está mais rápido, as redes sociais nos provocam tanto e a gente tá com pressa, parece que vamos chegar em algum lugar e ainda não percebemos que já chegamos. Já estamos aqui! Falta a gente perceber a beleza que é cada instante da existência. Não preciso provar nada para o mundo, não preciso chegar lá. Será que não estamos desviando as pessoas do verdadeiro sentido da existência, que não é só ter muito dinheiro. Se você tem dinheiro, você vai ter preocupações. As pessoas vão correr atrás de você pelo dinheiro, não pela sua amizade. É uma coisa tão passageira.>
É verdade que foi durante uma noite, ouvindo Beatles, que a senhora começou a se questionar sobre algumas coisas? >
Não exatamente. Os questionamentos existenciais surgiram por volta dos 11 anos. Fui aos livros: Nietzsche, Bhagavad Gita, Upanishads, poetas e letras de músicas inspiradoras como as de Pink Floyd, Yes, The Who, entre outras. Os Beatles me fascinavam pela capacidade de comunicação de massa. Nos Estados Unidos, em São Francisco, grupos zen já trabalhavam a permacultura e se tornaram exemplos de uma sociedade alternativa que era muito inspiradora para uma época de muitos conflitos, inclusive conflitos armados durante um governo militar. Eu era jornalista profissional do Jornal da Tarde e estava em contato diário com o noticiário, inclusive o que era censurado. Isso me levou à procura de alternativas sociais, políticas e econômicas, mas, nenhuma delas, para mim, poderia incluir violência, abusos e armas. >
O que a senhora procurava na época em que provou LSD e experimentou outras drogas? >
Procurava por Deus, procurava pelo sentido da existência. Fui encontrá-lo no silêncio das salas de meditação do Zen Center of Los Angeles, longe de drogas e em contato com a respiração consciente e a postura correta. >
Quando acontece a transformação na sua vida e quando você decide se tornar monja? >
A transformação é um processo incessante da vida. Fiz os votos monásticos em 1983, com 36 anos, em Los Angeles, no Zen Center de Los Angeles. Depois fui ao Japão, onde fiquei por 12 anos e tive a formação completa no Mosteiro Feminino de Nagoya. Voltei ao Brasil e continuo minha jornada de prática, de serviço e de estudos. >
Como foi a experiência de viver no mosteiro feminino em Nagoia?>
Foi uma experiência intensa e desafiadora. Não falava japonês e nem conhecia hábitos e cultura japonesas. Conhecia Mestre Eihei Dogen, fundador de nossa ordem Soto Zen Shu, no Japão. Um monge, autor, poeta e filósofo fascinante. Surpreendeu-me a vida comunitária e a exigência de tudo ser feito com todas. Foi difícil. Algumas vezes me senti triste, mas a tradução dos textos sagrados, as práticas de zazen, as liturgias, a Cerimônia de Chá, as várias mestras e mestres com quem pude conviver - e deles e delas aprender - superaram todas as dificuldades. >
Anos atrás, você me contou que esses anos no mosteiro foram os mais intensos e preciosos que teve. Por que?>
Por que aprendi a respeitar a mim e aos outros. Descobri que a coisa mais importante que a gente tem - e no Japão eles chamam de Kokoro, que é uma palavra que significa "coração" ou "alma" - é o nosso íntimo, a nossa essência do ser. E como é que educo essa essência? Eu percebo a necessidade das pessoas à minha volta. Na hora que me ponho em frente uma mesa com coisas gostosas, que eu gosto muito, antes de me servir, eu olho as pessoas que estão lá e procuro atender as necessidades dessas pessoas, antes da minhas. Se só tem um pedacinho de bolo na mesa e eu adoro esse bolo, eu vou pegar para mim? Ou eu vou ver se tem alguém também que quer e vou dividir? Isso é o que eu chamo de educar a essência.>
E a convivência no mosteiro?>
Foi muito interessante porque nós mudávamos de quartos, de companheiras, de funções. No mosteiro você vai percebendo que é possível reconhecer cada pessoa da maneira que ela é. Não como eu gostaria que fosse. Você vai desmascarando a si, as imagens e a programação interna que recebeu da família, da escola, do seu crescimento para ver cada ser humano como é.>
Em março de 2024, a senhora foi diagnosticada com câncer de pele. O que aprendeu com a doença?>
A gente aprende primeiro que nada permanente. O estado de saúde que a gente acha que é eterno, de repente não é. Eu já tinha tido pequenas erupções na pele, ia na dermatologista, ela queimava e falava: "Ah, isso não é nada". É por causa de sol, não tem perigo nenhum, então não dava muita atenção. Até que um dia fizemos um outro tratamento e descobrimos o câncer de pele. Os remédios nas células cancerígenas fizeram algumas feridas, então fiquei com crostras na face. E as pessoas diziam: 'Que absurdo, você não pode confiar nessa médica'. E todas as oncologistas que conversei me falaram: "Parabéns, você é um exemplo, porque você está seguindo a sua médica". Esse era o caminho de cura, e curou. A gente segue as orientações daquelas pessoas que sabem mais do que nós e confiamos e fazemos o tratamento como deve ser feito. >
Você é prima de Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, do Mutantes. E trabalhou iluminando alguns shows de rock. Tem saudades de ir em show de rock?>
Sabe que é diferente. Eu tinha 20 e poucos anos de idade, hoje estou com 78 anos. Embora eu gosto de rock and roll, de vez em quando, eu ouço alguma coisa nas redes sociais, não tenho lista de música. É muito gostoso ouvir uma guitarra bem tocada, que vai naqueles agudos que parece que leva você para o céu. Isso é lindo, mas eu não estou mais em idade, nem em condições de ficar muito tempo com muita gente, em salas muito lotadas. A minha vida mudou. O meu estado emocional e espiritual mudou. Eu gosto mais da quietude, do silêncio.
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O que que falta acontecer na sua vida?>
Vou construir um templo em Campos do Jordão. É o legado que eu vou deixar para vocês se divertirem, fazer meditação, estudos budistas e conhecer um pouco mais da cultura japonesa. Comprei esse terreno com dinheiro que consegui dando aulas e cursos online durante a pandemia, principalmente. O templo ainda não tem janela, não tem porta, mas tem telhado e paredes, mas ainda falta muita coisa. É uma coisa pequenininha, mas que possa acolher pessoas para se autoconhecerem, para saírem dos estados alterados de consciência, de ansiedade, de medo, de fuga, mas para encontrar si, encontrar a verdadeira paz interior.
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E a senhora vai morar lá? >
Se ficar pronto antes de eu morrer. Isso não sabemos (gargalhadas).
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