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'O menino que ganhou o mundo'. Confira a crônica de Maria Sanz

"O menino que ganhou o mundo". Confira a crônica de Maria Sanz

"'Qual problema?' - Se afinal havia descoberto que a coisa que seus pais mais tinham eram segredos"

Publicado em 14 de junho de 2018 às 12:08

"O menino que ganhou o mundo" Crédito: Unsplash

Menino, 9 anos no máximo. Boné, cabelo por cortar, bicicleta grande, mochila de corda, seu olhar.

Passou pela calçada irregular dessa manhã de sábado. (Aonde ele vai?)

Noite passada ouviu a discussão do pai com a mãe – sobre dinheiro, palavrões, mentiras e separação.

De repente, seus pais eram seres humanos. De repente, o mundo era novo – e inseguro, e a madrugada, que de costume era escura e profunda, agora era viva e ameaçava: tudo pode mudar quando chegar a manhã.

Amanheceu. Eu, que era uma mulher na calçada por onde sua bicicleta passava, também o ameaçava com meus óculos escuros e cabelos compridos. (Ele se defendia com o olhar).

Naquela manhã o menino desafiaria o que houvesse pelo caminho, porque já não tinha dúvidas: o mundo bem podia ser seu oponente.

No sinal do cruzamento, onde não podia avançar, voltou a fraquejar: e se mais tarde, quando a noite chegar, tudo for diferente? E se sua mãe cumprisse a promessa e fosse morar bem longe daqui?

O menino tinha medo de não ser o que queriam eles... (Mas queriam o quê?)

Ou melhor, "eu sirvo pra quê?" O menino quis saber depois de ouvir a estranha frase dita por sua mãe e confirmada por seu pai – “se não fosse pelos meninos, eu iria embora agora!” – e ele, “eu também”.

Se não fosse por ele e seu irmão...“Mas o que era essa função?”

E agora, a vida – que naquela manhã se resumia a escovar os dentes, preparar um copo de leite, vestir a roupa, calçar o tênis e pedalar pelas ruas até o campo de futebol – havia se tornado um desafio.

Estava decidido a não pensar sobre nada do que havia escutado, mas enquanto procurava o boné amarelo no armário, sentiu um fio morno escapar do olho e rolar pelo rosto. Limpou com o dorso da mão direita, pegou o boné vermelho mesmo e enterrou na cabeça – tinha muito a esconder.

Não queria servir só para aquilo que ouviu sua mãe dizer. "Se não fosse por ele..."

Não sabia dizer, precisava esconder, mas estava decidido a ser maior que o medo naquela manhã de sábado esquisita.

De repente, no meio da mágoa, o menino sentiu fome. Ele estava vivo e dependia de si mesmo. Foi até a geladeira, apanhou o resto de leite gelado que tinha, misturou com achocolatado e tomou num gole só. Depois da briga noite adentro, seus pais ainda dormiam. Ela, na cama grande com o irmão pequeno; ele, no sofá da salinha.

Chamou o elevador de serviço, fechou a porta como quem guarda um segredo.

“Qual problema?” – Se afinal havia descoberto que a coisa que seus pais mais tinham eram segredos.

Pronto. Agora ele sabia. E como era ruim saber... Pensava ele, enquanto pedalava contra o vento, contra a mulher na calçada, contra seu novo conhecimento: "Sinto falta de ser pequeno e não saber. Porque e agora?"

– "Eu sirvo pra quê?"

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