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Eu disse não: mulheres quebram silêncio e relatam casos de assédio

Eu disse não: mulheres quebram silêncio e relatam casos de assédio

Após serem intimidadas, humilhadas e agredidas por namorados, maridos e desconhecidos, elas resolveram dar um basta

Publicado em 4 de março de 2018 às 15:09

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Durante um bom tempo, a psicóloga Aline Silva de Freitas teve um sono agitado. Ao colocar a cabeça no travesseiro, revivia a violência sofrida de ex-namorados e um homem desconhecido. “Tive muitos pesadelos com tudo o que vivi. O processo de terapia e a conversa com outras mulheres que passaram por situações parecidas me fizeram superar”, conta.

A primeira vez que foi vítima de violência foi aos 17 anos, com o primeiro namorado, ainda no Rio de Janeiro, onde morava. O relacionamento, que começou bem, foi se tornando abusivo com o tempo. “Ele passou a se envolver com o tráfico de drogas e, mais tarde, foi preso e assassinado. Preferi me afastar; foi um grande trauma.”

Quando mudou pra Colatina, aqui no Estado, uma nova relação abusiva se iniciou. “Eu não gostava da cidade nem do trabalho. E via meu namorado como sendo a única coisa boa que estava acontecendo naquele momento na minha vida. Funcionava como o meu porto seguro. E essa situação abriu brecha para ele acabar crescendo e, inclusive, achar que eu dependia dele – nunca financeiramente, mas emocionalmente.”

A relação, que começou em 2008, durou sete anos, e a carioca sofreu nas mãos de um agressor. “Era uma relação abusiva e com muitas brigas. As coisas tinham que ser do jeito dele. É muito complicado quando achamos que só temos aquela pessoa e não percebemos essa violência psicológica. Ele me manipulou, me afastou dos amigos, alterava o tom de voz, fazia com que eu fosse a louca da história. Queria me manter presa a ele”, relata.

Aline nunca compartilhou as dores com a família. Era com as amigas que ela dividia as angústias e os medos. “Foram elas que abriram os meus olhos. Várias vezes ouvi: ‘Não dá para você colocar a sua vida na mão dele’”. Apesar dos avisos, foi o ex-namorado que terminou a relação.

Outro segredo, bem mais pesado, Aline carregou sozinha durante anos. Ela voltava de um jogo no Maracanã, no Rio de Janeiro, quando sofreu um estupro. “Estava com amigos, mas fui embora só. No caminho peguei uma van que tinha outras pessoas. Já era noite, tinha bebido, e queria chegar o mais rápido em casa. Pensei na minha segurança. Fui a última a descer e, na porta de casa, o motorista me agrediu física e sexualmente. Eu comecei a gritar e lembro dele dizendo: ‘Se gritar, vai sofrer’. Foi horrível! No dia seguinte fui encontrar os meus amigos, passei maquiagem nos hematomas para esconder, com vergonha. Não tive coragem de contar. Senti culpa, vergonha, nojo da pessoa e de mim. Só com o tempo compreendi que eu era vítima”.

Atualmente, ela trabalha no atendimento de mulheres vítimas de violência. “Me vejo muito nas histórias delas, mas dei um basta na violência que sofri e estou seguindo a minha vida”.

DADOS

No ano passado, a Polícia Civil registrou 12.771 ocorrências de violência contra mulheres no Espírito Santo (incluindo visitas tranquilizadoras), o que significa que, a cada 41 minutos, uma mulher foi agredida. Em 41 casos, a agressão atingiu seu ponto extremo: o feminicídio. Outros números são alarmantes. A cada 7.2 segundos uma mulher é vítima de violência física no país. Os dados mostram ainda que, enquanto o crime organizado mata jovens nas ruas, como numa guerra civil, o massacre feminino ocorre em casa. Segundo o Mapa da Violência, levantamento feito pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, o Brasil é o quinto mais perigoso para as mulheres. Só não somos piores que El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia. O Espírito Santo já foi o mais perigoso para uma mulher viver.

Para quebrar o silêncio, mulheres vítimas de violência contam nestas páginas como deram a volta por cima, após sofrerem nas mãos de namorados, maridos e desconhecidos. Foram violentadas simplesmente por serem mulheres.

Os caminhos para o fim da violência

O Espírito Santo liderou, por 10 anos, de 2002 a 2012, o triste ranking de assassinato de mulheres no país. Em 2009, atingiu a maior taxa de homicídios contra mulheres entre os estados brasileiros: 11 assassinatos por cada grupo de 100 mil, enquanto a média nacional foi de 4,4 mortes por 100 mil. Hoje o Estado ocupa a quinta posição.

Luciene Martins, 47 anos, foi assediada dentro do ônibus. (Carlos Alberto Silva)

A promotora de justiça Cláudia Santos Garcia, coordenadora estadual do Núcleo de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher (Nevid), acredita que a raiz da violência contra a mulher é uma só: o machismo. “Quanto mais cedo romper com a violência, maior é a chance que a mulher tem de sobrevivência. É preciso fazer denúncias e procurar redes de apoio”, diz a promotora.

Ela explica que, para enfrentar a violência contra a mulher, é preciso a construção de políticas públicas para atender a pluralidade das mulheres - negras, brancas, idosas, indígenas, etc... “É preciso levar em consideração os contextos sociais onde elas estão inseridas. Como falar de políticas e não pensar em escola e creche com tempo integral, por exemplo”. Também é preciso incluir o homem nesse debate. “Precisamos ter trabalhos com os homens agressores, desnaturalizando essa conduta que o homem normaliza desde pequeno”.

Claudia diz ainda que, outro caminho, é a desmistificação dessa violência. “O entendimento de que viver com violência não é normal. Isso precisa ser assunto nas escolas e na sociedade. Precisamos falar que as mulheres estão morrendo por causa de uma cultura que as discrimina”.

Os sinais que a mulher apresenta

Quando percebe que faz sempre tudo o que não quer para evitar que seu parceiro saia do controle dele. Deixa de falar ou fazer o que pensa para evitar um problema maior.

Depressão: fica deprimida. A Organização Mundial de Saúde define a violência contra a mulher como um problema de saúde pública, que pode motivar suicídios.

Fobia social: perde-se a vontade de sair de casa, de trabalhar.

Transtornos alimentares: passa a comer muito ou deixar de comer.

“Sofri assédio dentro do ônibus”

Luciene Martins, 47 anos, foi assediada dentro do ônibus, quando voltava para casa, depois de um dia de trabalho. “O rapaz chegou, encostou e eu fui me desviando. Por fim cheguei a trocar de lugar. Mas ele continuou e ficou excitado”.

Ela conta que se sentiu acuada com toda a situação. “Foi constrangedor. Como uma pessoa entra dentro de um coletivo e acha que tem o direito de fazer o que dá na cabeça?”, questiona. O medo maior veio depois, já que a filha adolescente também passaria a usar o transporte coletivo para ir a escola. “E se acontecesse com ela?”.

Após o ocorrido, em 2016, Luciene se juntou a outras mulheres e criou um grupo de apoio e denúncias de outros episódios de assédio dentro dos ônibus na Grande Vitória. “O pior é a gente se sentir suja. Eu fiquei assustada e, no início, achei que o problema fosse pelo coletivo estar lotado. Mas é preciso ficar claro que o assediador já sai de casa com essa intenção. Seja se esfregando, dando um jeito de esbarrar ou passar a mão. É preciso ficar claro que não é não”.

Luciene relata que ficou ainda mais assustada com o posicionamento de algumas mulheres. “Cheguei a ouvir coisas absurdas de outras mulheres. É preciso estarmos juntas”. Ela, que é mãe de três filhas, trabalha e diz que não carrega mais a culpa. “Não é a roupa, a beleza ou a postura. O problema é o ato. O homem tem que entender que ele é filho de uma mulher, neto de uma mulher e pode ser pai de uma. Hoje estou estabilizada, mas quando vejo algo parecido, tenho vontade de chorar”, conta.

“Ele tirou sangue do meu rosto”

“Meu pesadelo durou cinco anos e meio. Durante o namoro a gente saía, se divertia e aproveitava a vida como qualquer jovem. Ele era um pouco ciumento, mas nada que me causasse estranheza ou medo. Também era usuário de drogas, mas eu realmente acreditava que poderia ajudá-lo a sair dessa. Não deu.

Engravidei do meu primeiro filho aos 18 anos e resolvi sair de casa para morar com ele e formar a minha família. Com o tempo, o ciúme foi aumentando. Ele trabalhava como segurança, e eu trabalhava durante a madrugada, porque nesse horário o salário era maior e também acabava que eu tinha contato com outros funcionários pelo telefone. Foi durante uma madrugada que ele surtou. Pegou meu celular, subiu em cima de mim e começou a me dar socos no rosto. Ele, um homem forte e com a mão pesada, tirou sangue do meu nariz. Consegui gritar, e vizinhos vieram me socorrer, caso contrário poderia ter acontecido o pior. Liguei para os meus pais e, a partir daquele momento, não queria saber de mais nada. Peguei as minhas coisas e fui embora.

Só que minha vida virou um inferno. Ele me ameaçava, mesmo eu tendo a medida protetiva. Insistiu várias vezes querendo voltar e dizendo que tinha mudado. Eu nunca acreditei. O medo que tive durante alguns anos foi absurdo. Poderia sair na rua e encontrá-lo. O que ele faria?

Criei meu filhos, que hoje estão com 8 e 10 anos, fiz questão de que eles não se afastassem do pai, mas nunca mais o vi. Hoje não tenho mais medo. Casei novamente, sou apaixonada, e meu atual marido me fez enfrentar esse medo. Ele me trata bem, me ajuda na criação dos meus filhos, me coloca para cima. Eu voltei a sorrir.”

*Maria, 26 anos

“Demorei a aceitar que a culpa não era minha”

A universitária Lorena Aline Rocha, 25 anos, é uma vítima da violência psicológica. Ela, que cresceu em Vitória, teve uma adolescência parecida com a das amigas e das meninas de sua idade. Até que, aos 17 anos, iniciou um relacionamento que se tornou abusivo.

“No primeiro mês foi uma maravilha, depois comecei a perceber como ele era de verdade. Eu não podia conversar com os meus amigos, ele me vigiava nos lugares que ia, como escola ou na academia. Era um sentimento de posse”, conta. Por diversas vezes ela tentou terminar, ele nunca aceitou. “Ele me agredia verbalmente. Tinha medo que algo pior acontecesse”, conta.

A universitária Lorena Aline Rocha, 25 anos, sofreu violência psicológica. (Ricardo Medeiros)

Aline foi obrigada a mudar de Estado para que o relacionamento realmente acabasse. “Fui estudar em Minas Gerais para ver se ele me deixava em paz”. Foi preciso um tempo para recomeçar na vida amorosa. “Os meus outros relacionamentos foram tranquilos. Mas demoraram para evoluir, eu fiquei com um trauma muito grande. Não sabia se podia confiar nas pessoas”, conta.

Há dois anos ela voltou a morar no Estado e o ex voltou a procurá-la. “Ele pede para voltar, dizendo que me ama. Eu falo não! Antes eu tinha medo, mas hoje enfrento ele”. Aline está solteira, se dedica aos estudos e adora sair com os amigos. “A vida está ótima”, gosta de dizer.

Mas também ressalta que, muitas vezes, não é fácil de colocar um sorriso no rosto. Ela também passou pela violência de um estupro, feito por um amigo de infância. “Saímos em um grupo de amigos para beber e acabamos indo para casa dele dormir. Acordei com ele em cima de mim, tendo relação sexual. Nunca imaginei que um amigo de infância pudesse fazer isso. Me senti muito culpada. Culpa por ter bebido, por ter saído com amigos, por ter dormido fora de casa. Durante um tempo, tomar banho era a pior coisa do dia, era quando me tocava. Hoje sei que a culpa não é minha. A culpa é dele, sempre será. Não fiz um boletim de ocorrências para não prolongar a minha dor. Hoje me arrependo, deveria ter feito”.

 

Por que ela não o abandona?

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Há muitos motivos pelos quais uma mulher não sai ou retorna para um relacionamento abusivo. Então, não use jargões populares e sem sentido para lidar com o assunto.

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