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Cuidados Paliativos: mais amor e menos dor na hora do adeus

Cuidados Paliativos: mais amor e menos dor na hora do adeus

Nova filosofia médica prega olhar mais humanizado sobre pacientes terminais

Publicado em 27 de dezembro de 2019 às 14:19

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Doente - Paciente terminal no leito: cuidados paliativos se tornam uma opção para evitar sofrimento. (Shutterstock)

Morte. É o destino de todos nós. E ainda assim algo difícil de aceitar. Vamos levando a vida como se ela não existisse. Poucos são os que pensam, falam sobre o assunto. Natural. Mesmo com toda fé do mundo ela não deixa de ser misteriosa e sombria.

Mas a verdade é que cedo ou tarde temos que encará-la de frente. Seja porque alguém querido vai partir, seja porque chegou a nossa hora de dizer adeus. Será que dá para se preparar para ela?

“Impossível. Ninguém se prepara para morrer. Mas todos deveríamos pensar nisso com mais naturalidade. Faz parte da vida. Já nascemos com um bilhete de ida e volta”, diz a médica Cristiana Guimarães Savoi.

Essa visão corajosa é base para quem trabalha com cuidados paliativos, uma filosofia nova no Brasil que cuida de pessoas que estão morrendo com um olhar humanizado, oferecendo a elas a possibilidade de passar os últimos dias com menos dor, mais conforto, mais dignidade. E nessa hora tão delicada, é dado aos familiares um amparo e a chance de uma despedida mais tranquila no tempo que restar com o doente.

A mesma Medicina que tira as esperanças, dá um alento. “Entramos em cena quando o médico diz ‘olha, não há mais o que fazer’. O que mais apavora esses pacientes é o medo do sofrimento. Então, vamos atuar para aliviar os sintomas, tirar a dor, dar acolhimento nessa fase terminal”, explica a médica Waleska Cintra, que atua com cuidados paliativos desde 2010 no Estado.

Família

O foco também é na família do paciente, tão fragilizada com a dura realidade da proximidade da morte. “Mostramos a eles a proposta de cuidado individualizado com foco no controle de sintomas, cujo objetivo não é apressar a morte, ao contrário, é permitir uma morte o mais natural possível, preservando qualidade de vida e conforto. Apesar das dificuldades e do sofrimento que envolvem toda a vivência de uma doença grave, geralmente quando os familiares conseguem entender isso, eles ficam todos menos sofridos, ou pelo menos tem um alento para o sofrimento”, observa Waleska.

Muitas vezes, a proposta passa por tirar a pessoa do ambiente hospitalar, mantendo-a em casa, com toda estrutura médica. Porém, em caso de uma piora no quadro geral, a vida não vai ser prolongada de modo artificial. Opta-se por não realizar procedimentos considerados altamente invasivos, traumáticos e quase sempre irreversíveis.

Decisão

A hora de tomar essa decisão nunca é fácil. Muitos sentimentos vêm à tona, junto com valores de cada família. Há quem prefira não lidar com isso. “Tem gente que acha que para Deus tudo é possível. E a gente respeita. O objetivo é diminuir o sofrimento, não é causar mais, não é tirar esperanças de ninguém”, diz Waleska.

Tudo é muito conversado, tem que haver consenso. Se o próprio paciente não puder fazer sua escolha, é a família que o fará. “Muita gente não quer ficar em cima de uma cama, presa a aparelhos, com respiração artificial, sem interagir, sem se alimentar direito. Isso não é qualidade de vida. Se as pessoas pudessem pensar nisso, não iriam querer passar os últimos dias assim”, analisa a médica paliativista.

Mas não se trata aqui, no entanto, de fazer o paciente abandonar um tratamento, desistir de lutar pela vida. “Os tratamentos associados não são abandonados. Lutamos e muito pela vida digna. É importante deixar claro que cuidado paliativo não é sinônimo de fim de vida, embora envolva cuidados também com essa fase. A equipe chega com uma proposta diferente, de respeito às vontades do paciente e família. Essa abordagem tenta proporcionar meios para que a morte seja encarada como uma fase real e que esse processo seja vivido também de forma a proporcionar o maior conforto possível a todos. Quando se pode proporcionar melhor qualidade de vida, em muitos casos, isso impacta no tempo de sobrevida”, destaca Waleska.

Ela cita o caso de uma paciente que sofria de câncer de fígado, em estado terminal. “Ela sentia falta de ir à igreja. Não pode sair, se levantar. Então, levamos o pastor até o hospital para fazer uma oração para ela. A gente tenta fazer com que a pessoa tenha pequenas satisfações”.

No país

No Brasil, pouca gente tem acesso a essa nova forma cuidado. “A maioria das pessoas que têm doença grave e crônica vai ficar desassistida ou mau assistida no Brasil. Estamos mal preparados nessa área, em desvantagem em relação ao resto do mundo”, aponta Cristiana Savoi.

No Estado, o atendimento nessa área é incipiente. “Alguns hospitais públicos começam a se movimentar mas de uma forma ainda muito distante do ideal“, afirma Waleska Cintra.

Depoimento

"Minha mãe dizia que não queria 'vegetar'"

“Tudo começou com uns tropeços na rua. Um mês depois, minha mãe já estava de muletas. Começamos a entrar em desespero. Ninguém descobria o que ela tinha. Fomos para São Paulo e procuramos vários especialistas. Um neurologista falou sobre uma hipótese e pediu mais exames. Quando veio o diagnóstico, ela estava prestes a completar 60 anos de idade: era a esclerose lateral amiotrófica, uma doença progressiva e sem cura. Ela já voltou de São Paulo com duas muletas e três meses depois já precisou de uma cadeira de rodas. Tentamos várias terapias, mas a doença só evoluiu. Chegou um ponto em que ela tinha muita falta de ar. Isso foi em setembro de 2016. Minha mãe não queria ir para o hospital, queria ficar em casa. Mas não teve jeito. Ela teve uma crise que descompensou todo o organismo. Foi para a UTI e não saiu mais de lá. O hospital indicou uma médica que atuava nos cuidados paliativos, e ela foi conversar com minha mãe. E minha mãe começou a se abrir e a falar como ela queria que fosse dali para a frente. Falou que não queria que fizessem traqueostomia, embora os demais médicos insistissem para que fizesse. Ela passaria a respirar por aparelhos.

Eu e meus irmãos conversamos com a nossa mãe e prometemos que faríamos da forma como ela quisesse. Então, nos últimos meses de vida dela, procuramos atender seus desejos. O que ela queria comer, nós levávamos. Até o final, ela conseguiu comer, conversar. Para ela, traqueostomia não era viver mais. ‘Eu não quero vegetar’, ela dizia. Fizemos o que podíamos fazer. Ficamos com ela o tempo todo. A vida toda ela fez o que queríamos. O amor que podíamos dar naquela hora ela aceitar o que ela queria. Minha mãe faleceu em maio deste ano. Conseguimos nos despedir. Antes de ir, ela chamou todos os filhos, disse que estava indo embora e pediu que ficássemos sempre unidos. Estava serena, não teve agonia. E nossa família, apesar de toda a dor da perda, ficou em paz. Tenho certeza de que fizemos a melhor escolha porque era o desejo dela.”

Depoimento

Paciente internado em hospital recebe apoio de familiares"Ele tem que morrer com dignidade, sem sofrimento"

Aos 88 anos, o senhor G. sofre há pelo menos oito anos de uma doença neurodegenerativa grave e sem cura, o mal de Parkinson. Ele está internado em um hospital particular de Vitória e se alimenta por uma sonda ligada ao estômago. Não anda mais e fala pouco, com dificuldade.

Os quatro filhos estão cientes de que não há mais volta. E acreditam que o melhor para o pai é passar os últimos dias com o máximo de conforto possível, recebendo os cuidados paliativos.

“A gente foi vendo o quadro dele piorar. A cada intercorrência, ele descia um degrau. A cada internação, voltava pior para casa”, conta uma das filhas de G., a funcionária pública aposentada T., 56 anos.

Para a família, não é justo prolongar esse sofrimento. Por isso, a decisão, em conjunto, foi por não reanimar o pai, caso ele tenha uma parada cardíaca, por exemplo, e não consiga mais respirar sozinho.

Para a médica Waleska Cintra, que atua nos cuidados paliativos e acompanha essa fase de G., dificilmente uma família faz uma opção que não seja pelo conforto do paciente. “E isso não significa desistir de tudo. É o contrário. Os cuidados com o paciente são redobrados. Tudo visando à qualidade de vida, dentro do que for possível fazer”, diz ela.

T. diz que já começou a se despedir, aos poucos, do pai. “Quando tive conhecimento dos cuidados paliativos, só reforçou o que sempre pensei. O momento em que ele partir vai ser muito difícil. Essa escolha nossa não diminui nossa dor, mas dá mais tranquilidade. Sabemos que se pudesse ele iria querer que fosse assim. Tem que morrer com dignidade”, diz T.

Entenda mais

Origem do termo

“Paliativo” vem do latim pallium, que significa “manto”, “coberta”, mas também pode ser aquilo que possui a capacidade de acalmar um sofrimento.

O que é

É a assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais.

Ortotanásia

É o conceito no qual se baseiam os cuidados paliativos. Significa morte correta, ou seja, a morte pelo seu processo natural. Permite-se que no paciente que se encontra em processo natural de morte, esta siga seu curso natural. Nesses casos, o médico não utiliza ou interrompe terapias artificiais que evitariam temporariamente a morte de um paciente portador de doença incurável, prolongando uma vida sem qualidade.

Eutanásia

Já a eutanásia consiste em abreviar a vida de um paciente que sofra de doença incurável que traz sofrimento. No Brasil, é crime de homicídio.

Distanásia

É considerada uma má prática médica, é o prolongamento artificial do processo de morte através da utilização de procedimentos artificiais.

No mundo

De acordo com dados da OMS(*) de 2015, 40 milhões de pessoas no mundo precisam de cuidados paliativos, mas apenas 15% dessa população recebe esses cuidados.

No Brasil

Estima-se que apenas 0,3% dos pacientes consigam ter acesso aos cuidados paliativos. Há apenas

123 serviços com equipes de cuidados paliativos em diversos hospitais no país.

No ES

No Estado, há profissionais atuando em hospitais como Dório Silva, na Serra; e Santa Casa de Misericórdia e Hospital das Clínicas, em Vitória.

Para saber mais sobre o assunto

Acesse o site da Academia Nacional de Cuidados Paliativos - https://paliativo.org.br/.

(*) Organização Mundial de Saúde

Fonte: Profissionais entrevistados

Entrevista

waleska_cintra.jpg"Nem sempre quem está com o coração batendo está vivo"

A médica pneumologista Waleska Cintra lida há mais de 30 anos com pacientes graves. Ela sempre se inquietou com a forma como as pessoas (e isso inclui profissionais da área de saúde) lidavam com as doenças sem chance de cura. “Falava com o coração, sem especialização. Mas depois vi que há técnicas. E fui estudar os cuidados paliativos”, disse Waleska, que conta mais sobre essa nova forma de cuidado com os doentes terminais e seus familiares.

Muita gente não entende o conceito dos cuidados paliativos. Até dentro da área da Saúde o assunto é complicado, não é?

O preconceito ainda é muito grande, mas isso se deve principalmente a um desconhecimento e à visão excessivamente tecnocrata que a Medicina passou a ter nos últimos tempos. Para muitos colegas, diminuir o sofrimento é dar sedação e deixar morrer. Já ouvi coisas absurdas como: “cuidados paliativos são uma eutanásia maquiada!”. Ou “vai colocar uma bomba de morfina pra sedar o paciente, né?”. Desde o início da vida acadêmica, aprendemos que o dever dos médicos é salvar vidas. Pouco ou nada, no entanto, nos é ensinado sobre como lidar com a morte e confortar o paciente nessa fase difícil da vida. Geralmente quando não há mais recursos para a cura da doença, o médico se retira de cena. Esse olhar, que antagoniza vida e morte, isolou os dois eventos como se não houvesse relação entre eles, fazendo com que a morte pareça um fato isolado, um fracasso e não um evento natural na trajetória do ser humano.

Por que os cuidados paliativos são confundidos com eutanásia?

Falta de conhecimento! Na verdade, a própria ideia que temos do que seja paliativo já dificulta as coisas. Associa-se cuidado paliativo a “gambiarra”, com “não fazer mais nada”. Isso é um equívoco. Na eutanásia, o médico provoca a morte do paciente que esta sofrendo. Mas o que fazemos é a ortotanásia, que é a proposta de não realizar procedimento invasivos, manter a pessoa viva só conectada a aparelhos. É permitir a evolução natural da doença, respeitando as vontades do paciente. Quando se pode proporcionar melhor qualidade de vida, em muitos casos, isso impacta no tempo de sobrevida. Mas nem sempre o paciente que está com o coração batendo está vivo. É preciso olhar o paciente com compaixão, com amor. Avaliar o paciente enquanto ser único. Só isso possibilita uma abordagem de seu sofrimento de acordo com suas necessidades.

As pessoas deveriam expressar aos familiares como gostariam de morrer? Ou como não gostariam de morrer?

Sim. Acho que da mesma forma que escolhemos a maneira como vamos viver, trabalhar, envelhecer, devemos e temos o direito de escolher como gostaríamos de morrer, como escrever o epílogo de nossa história. A finitude humana é uma realidade da qual não podemos e não conseguimos fugir. Não sabemos quando morreremos. Posso dizer que, eu pessoalmente, diante de uma doença grave, sem proposta de cura, não quero ser mantida viva por meios artificiais.

Você já relatou à sua família como quer que aconteça caso se veja numa situação terminal?

Tenho meu testamento vital, que estabelece o que considero vida com dignidade e respeita minhas preferências sobre tratamentos no final de vida. Meu desejo é que seja respeitada a linha do tempo da vida que me foi dada, sem procedimentos invasivos que visem manter uma vida sem qualidade. Desejo que meu conceito de “vida com dignidade” seja respeitado.

O caso do bebê americano Charlie trouxe o tema para o debate: os pais do menino não aceitavam a prática de cuidados paliativos. Foi preciso a justiça intervir. O que achou do desfecho da história?

É importante que se diga novamente que não é fácil. Principalmente quando diz respeito a crianças, recém- nascidos, jovens... Há muitas emoções envolvidas. No caso do bebê Charlie, a justiça interveio no sentido de negar um tratamento experimental, sem evidências de benefícios, em um momento tardio de uma doença sem cura. Era um paciente portador de doença terminal e irreversível, uma doença mitocondrial rara que afetou células do cérebro, coração e pulmão. Mas a principal premissa dos cuidados paliativos é que seja respeitada a vontade da pessoa ou dos familiares. Essa proposta deve ser partilhada e aceita pelas partes. É essencial que se respeite o tempo de cada um, que será diferente de acordo com suas crenças, costumes, etnia e da situação que se está vivendo. Importante entender que os cuidados paliativos visam a diminuir o sofrimento e não aumentar, por isso o assentimento da família é essencial.

Há outros casos reais famosos em que os cuidados paliativos foram adotados?

Um dos casos mais emblemáticos é do papa João Paulo II. Ele escreveu em seus últimos dias: “A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionais não equivale ao suicídio ou a eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição humana diante da morte!”.

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Reportagem originalmente publicada em 2017

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