Navegando pela imensidão do Rio Negro, Elis teve a certeza: não voltaria a mesma pessoa dessa viagem
Navegando pela imensidão do Rio Negro, Elis teve a certeza: não voltaria a mesma pessoa dessa viagem. Crédito: Elis Carvalho

Repórter fez 15 dias de viagem pelo coração da Amazônia com R$ 1.928

Sozinha, a repórter Elis Carvalho viajou dias dentro de um transporte de cargas, conheceu moradores da região, pescou para poder comer, nadou com botos e encarou até mesmo uma noite inteira no meio da floresta, dormindo em uma rede

Vitória
Publicado em 07/11/2020 às 05h01
Atualizado em 07/11/2020 às 09h55

Com olhos marejados de emoção, a bordo de uma canoa simples de madeira, navegando pelo Rio Negro, na Amazônia, eu tive certeza: nunca mais seria a mesma. Tudo parecia minimamente calculado pela natureza para me dar as boas-vindas. Botos saltavam exibindo todo o mistério por baixo daquela água escura, que mais parece chá-preto. Aves de todos os tipos e cores faziam manobras e canções no ar. Com olhares mais atentos às gigantescas e centenárias árvores, era possível observar jacarés sob as raízes e preguiças sobre copas. A certeza de mudança não valia-se apenas pelo sentimento de felicidade em estar no coração do país, sentindo o ar mais puro e ouvindo diversos sons que mostravam que eu não estava sozinha mesmo que parecesse. Mas pela percepção de que é preciso muito respeito pela Amazônia e pelos povos indígenas se a gente almeja que a floresta continue existindo.

O NAVIO: CULTURA E PAISAGENS INCRÍVEIS

Turismo na Amazônia, feito pela repórter Elis Carvalho
Para viajar, basta levar sua rede e estar disposto a conhecer gente nova. Isso porque é impossível ter privacidade naquele emaranhado de redes. Crédito: Elis Carvalho

Minha viagem pela floresta Amazônica teve início em Belém do Pará, quando embarquei em um navio que segue para Manaus. Originalmente, o transporte é destinado a cargas. Mas já faz tempo que turistas e moradores da região usam a embarcação como de passageiros.

De Belém a Manaus são seis dias viajando. Decidi parar no meio do caminho, em Alter do Chão, no Pará, e só após um tempo seguir para o Amazonas. Sem saber que a boa lábia e a cara de pau para pechinchar era de extrema importância na compra da passagem, paguei R$ 200 de Belém à Santarém. Mas conheci pessoas que pagaram R$ 150. Para viajar, basta levar sua rede e estar disposta a conhecer gente nova. Isso porque é impossível ter privacidade naquele emaranhado de redes.

Muita gente me pergunta se tive medo em fazer essa viagem de barco sozinha. É claro que dá um certo receio de encarar o desafio. Mas não demorou muito para eu entender que viver em comunidade exige não só respeito ao próximo e cabeça aberta para mergulhar em novas culturas, como também união para ter proteção. Quem está nas redes ao lado, vira família. Os outros grupos viram vizinhança. Logo eu já me sentia segura o suficiente para aproveitar a experiência e as lindas paisagens.

Turismo na Amazônia, feito pela repórter Elis Carvalho
Do pôr do sol exuberante até a noite super estrelada: o céu visto do barco sob o rio é sempre um espetáculo a parte. Crédito: Elis Carvalho

Aliás, que paisagens! Um mundo de rio no meio da floresta com animais exibindo beleza por céu, terra ou água. O céu, em especial, era sempre um espetáculo à parte. O vi de todas as formas e cores. Ainda na dúvida se o meu preferido era o pôr do sol sempre exuberante e colorido ou a noite estrelada que mais parecia um planetário.

O navio possui quatro andares. No térreo é o espaço onde ficam as cargas, que incluem veículos, mudas para plantações, caixas com mudanças e tudo mais que você pode imaginar. No primeiro andar há o espaço para redes com ar-condicionado, banheiros, um restaurante no fundo, além das acomodações em camarotes e suítes. No segundo andar a diferença é que o espaço é para redes sem ar-condicionado, e no fundo há um bar. Por último, um espaço aberto de lazer, ideal para curtir a vista, com chuveiros para quem quiser espantar o calor.

Escolhi ficar no segundo andar para tentar escapar do barulho do motor. Quando eu cheguei, já havia outras pessoas em suas redes instaladas, sendo pelo menos 70% formadas por homens. Escolhi meu lugar tentando ficar um pouco afastada, pensando que teria alguma privacidade (doce engano). Os olhares lançados para mim, mulher e sozinha, eram de curiosidade. Confesso que durante os dias de viagem percebi que ainda há uma cultura machista muito forte na região. Era possível notar isso em algumas conversas e olhares que me incomodaram, mas nada que tirasse minha paz.

Amarrei minha rede com a ajuda de um passageiro que percebeu que aquela não era minha especialidade. Logo depois, duas moças - mãe e filha, se aproximaram procurando um lugar para ficar. Rapidamente me prontifiquei a dividir espaço com elas. Me sentiria mais segura com presença feminina. Dessa forma, eu sabia que nos ajudaríamos, caso necessário. Conforme as horas iam passando, o emaranhado de redes ia ficando mais cheio.

Elis Carvalho

Repórter

"Na hora de dormir eu me surpreendi: até que não foi difícil descansar em rede. Difícil é dividir espaço com tanta gente. Só depois de algum tempo de observação descobri que até pra dormir em rede tem um jeito certo, deitando na diagonal. É a forma mais confortável e você conquista seu espaço. Se deitar na vertical será facilmente “engolido” pelos outros hóspedes"
Turismo na Amazônia, feito pela repórter Elis Carvalho
Ribeirinhos de todas as idades, até mesmo crianças pequenas, remam contra as ondas que o navio forma, amarram seus barquinhos na gigantesca embarcação e pulam no navio para vender. Crédito: Divulgação

Enquanto o navio segue é possível ver pequenas comunidades ribeirinhas que vivem de forma isolada. Quando percebem a aproximação de navios de carga, é comum que crianças se aproximem em canoas para pedir doações ou vender alimentos que produzem, como como açaí, queijo e camarão. Incrível como crianças, até mesmo as menores, conseguem se virar tão bem no rio, remando contra as ondas que o navio formava, amarrando seus barquinhos na gigantesca embarcação, pulando da canoa para o navio para vender.

Quando o navio parava em uma cidade para embarque e desembarque, era um evento à parte. Toda as pessoas corriam para a sacada para assistir à vida em terra firme, entre idas e vindas. Quando o barco se afasta da margem é emocionante ver as cidadezinhas ficando cada vez menores em meio à imensidão de rio.

AMOR, SONHOS E MEDO

Turismo na Amazônia, feito pela repórter Elis Carvalho
Simone e Domingas: paixão juvenil ficou do outro lado do rio e preocupação com o futuro. Crédito: Elis Carvalho

Assim que mãe e filha se instalaram eu percebi que havia uma certa tristeza no ar. Simone, de 20 anos, abraçava a mãe Domingas, de 45 anos, como uma criança que queria colo. E por alguns segundos a jovem mulher de 20 anos era só uma garota. Simone chorou. Domingas também. Foi a primeira vez que as vi chorar, mas essa cena repetiu-se outras vezes durante a viagem.

Eu percebi logo que Simone não estava muito para papo. Antes do navio sair, mãe e filha fizeram uma transmissão de vídeo pelo celular com os familiares que deixaram no Piauí, terra Natal de Domingas. Mais uma vez elas choraram juntas.

Só após algumas horas Domingas me contou o motivo da tristeza da menina. Depois de cinco meses visitando os familiares no estado nordestino, a adolescente conheceu um jovem de 24 anos e se apaixonou. Agora, a menina quer retornar ao Piauí para casar com o moço que acabara de conhecer, afligindo a mãe, que quer que a garota termine os estudos antes de pensar em compromisso sério. E toda vez que falavam do assunto, os olhos das duas enchiam de água.

_ O seu marido, hoje, deveria ser seus estudos. Para você nunca depender de homem. Dizia Domingas à filha. 

_ Mas é minha felicidade, mãe.

_ Olha meu exemplo, filha. Eu saí do Piauí porque me apaixonei pelo seu pai, que eu nem sequer conhecia direito. Larguei minha família, engravidei logo e não consegui construir nada pra mim. Não repita a mesma história. Pensa no seu futuro.

_ Eu quero um futuro com ele.

A HISTÓRIA DE DOIS IRMÃOS

Turismo pela Amazônia feito pela repórter Elis Carvalho
Enquanto o navio segue é possível ver pequenas comunidades ribeirinhas. Quando percebem a aproximação de navios, é comum que crianças se aproximem em canoas para pedir doações ou vender alimentos . Crédito: Elis Carvalho

Aproveitei para fotografar o momento da viagem onde navio passa mais próximo da margem e é possível ver os ribeirinhos e suas casas. Foi nesse momento que conheci o Benício.

_ Fez muita foto legal? Ele perguntou.

_ Muitas! Respondi sem tirar os olhos da câmera.

_ Legal. Mas cuidado com a câmera. Se deixar, aqui pegam mesmo.

_ Eu sei. Estou tendo cuidado. Ela fica o tempo todo comigo. Mas tenho que fotografar, vim aqui para isso.

_Você é jornalista?

_Sim.

_Vai fazer matéria sobre essa viagem?

_Vou sim.

_Então deixa eu te contar a minha história. Eu estou aqui para transportar o corpo do meu irmão. Ele será enterrado no mesmo lugar onde estão os corpos de outras pessoas da nossa família.

Turismo na Amazônia, feito pela repórter Elis Carvalho
Benício e o caixão com o corpo do irmão, que morreu em decorrência de complilcações do HIV. Crédito: Elis Carvalho

_Seu irmão morreu de quê?

_Complicações do HIV.

_E o corpo dele está aqui?

_Sim. Quer ver?

_Não, obrigada.

_ Jornalista medrosa. Disse ele, aos risos.

Benício me contou que o irmão teve uma relação extraconjugal após uma crise no casamento. Segundo ele, uma única relação sem preservativo com uma ex-namorada foi o suficiente para tornar o irmão soropositivo. Ele só foi descobrir a doença após algum tempo, em 2014. Sem saber, ele ainda infectou a esposa. Após descobrir o vírus, não aceitou e recusou-se a fazer o tratamento.

Benício acredita que além de complicações na saúde decorrente ao HIV, o irmão pode ter sido vítima de negligência médica. Pois a última vez que foi ao hospital, teriam injetado nele remédio para hanseníase. Estudante de Direito, ele promete ir atrás dos direitos da família.

Enquanto olhava os ribeirinhos, me contou como foi crescer tendo o Rio Amazonas no quintal de casa, como aprendeu a nadar com o irmão, as brincadeiras dos dois em meio aos botos, as disputas de quem pulava mais alto, dos esporros que levavam da mãe após "fugirem" para o rio.

_ Era para eu e meu irmão estarmos fazendo essa viagem juntos. Indo visitar a terra dos nossos pais. Planejamos tanto isso. Adiamos tantas vezes. Agora estou carregando o caixão com o corpo dele. É muito triste pensar nisso.

_É muito triste. Eu sinto muito.

TOTAL DE GASTOS NO NAVIO

Economizei a primeira refeição porque ganhei uma marmita tipicamente nortista da minha anfitriã em Belém. Mas cada almoço custava R$ 10 e o prato era composto por uma carne (de boi, frango ou peixe), arroz, às vezes feijão, macarrão e salada. Há também opção de misto-quente e macarrão instantâneo vendendo no bar. O café da manhã custa R$ 5 o simples (café com leite ou puro e misto-quente) e R$ 7 o completo (que inclui também mingau e frutas). Durante os três dias no barco, gastei R$ 75 com comidas e bebidas.  

O CARIBE AMAZÔNICO

Turismo na Amazônia, feito pela repórter Elis Carvalho
Dependendo da maré, é possível atravessar andando a praia da Ilha do Amor curtir o cenário de praia na floresta. Crédito: Elis Carvalho

Após três dias pelo rio, chegamos a Santarém, na região do Baixo Amazonas, no Pará. Antes mesmo do amanhecer eu já estava de pé, louca pra pisar em terra. Arrumei todas as minhas coisas e observei a cidade de Santarém aproximando-se. Um dia antes, puxei assunto com todos os mochileiros que identifiquei na embarcação e soube que eles também iriam parar em Alter do Chão, em Santarém, o caribe amazônico.

Após arrumar a mochila, me uni ao grande grupo de 11 e descemos juntos do navio. Éramos eu, um paraense, dois paulistas, dois alemães, um belga, uma argentina e três meninas da Espanha. Ali, naquele navio, nasceu uma amizade linda que superou qualquer diferença.

Tomamos café em Santarém por R$ 5, pegamos um ônibus para Alter do Chão por R$ 3, e em uma hora já estávamos no paraíso. A galera foi para um redário e eu segui para o Hostel Pousada Tapajós, o melhor custo benefício que encontrei na região. Depois de tantos dias em rede, eu precisava de um lugar confortável, mas que fosse econômico.

O Hostel Pousada Tapajós tem quarto coletivo com ar-condicionado, wi-fi e café da manhã por R$ 55. A estrutura é ótima, com cozinha, lavanderia, área de lazer com redes, churrasqueira, sala de leitura e TV. Tudo lindo e muito aconchegante.

Após me instalar, encontrei o grupo de turistas e seguimos para um restaurante da região, o Siriá Bistrô Vegetariano. Dividi um prato grande e delicioso com uma amiga e saiu por R$ 15 para cada. Depois, seguimos de barco para a praia da Ilha do Amor, por R$ 10 ida e volta. Dependendo da maré, é possível atravessar andando.

Desde que conheci o Pará, me tornei fã da praia de rio. Relaxamos durante a tarde naquele visual de praia na floresta. Vimos um pôr do sol incrível e antes de escurecer retornamos para casa.

Já à noite, fomos à praça da região onde comemos Tacacá por R$ 10. Depois tivemos uma verdadeira aula de Carimbó com os locais no meio da rua, enquanto bebíamos algumas cervejas locais por R$ 20 cada pessoa no total.

O povo paraense é hospitaleiro e Alter do Chão é um verdadeiro paraíso em meio a floresta amazônica, com clima descontraído, pé na areia, iluminação necessária e uma beleza a cada cantinho.

Matéria de turismo na Amazônia feita por Elis Carvalho
Igarapé do Jamaraquá, um estreito rio no meio da floresta com águas cristalinas: um dos lugares mais lindo que eu já estive. Crédito: Elis Carvalho

UMA NOITE NA FLORESTA

Acordamos bem cedo e seguimos para o passeio combinado no dia anterior com os barqueiros quando íamos para a Ilha do Amor. Por R$ 200 seguimos para uma das experiências mais incríveis da vida: uma noite e dois dias na floresta, com passeio, hospedagem e toda alimentação inclusa.

Turismo na Amazônia, feito pela repórter Elis Carvalho
Bata, o patriarca da comunidade indígena de Jamaraquá, é uma verdadeira lenda viva da Floresta Nacional dos Tapajós . Crédito: Elis Carvalho

O passeio começa com uma hora de barco do Centro de Alter do Chão até a comunidade de Jamaraquá. Ao chegarmos, fomos recebidos pelo Bata, o patriarca da comunidade indígena e uma verdadeira lenda viva da Floresta Nacional dos Tapajós (Flona). Com 14 filhos e 41 netos, ele tem muita história e conhece absolutamente tudo sobre a floresta. Pessoa de luz, alegria e sabedoria, daquelas que a gente ama conhecer e estar perto. Ao lado dele, sua companheira: a simpática e cozinheira de mão-cheia, Socorro.

Seguimos pelo passeio, onde conhecemos diversas espécies de animais e plantas. De início, uma linda preguiça nos recebendo. Depois, aranha, cobra do mato, macacos. Plantas medicinais, plantas venenosas, cipó que dá água, cipó que serve de rede, formiga que vira repelente natural, seringueira que vira latex, entre tantos outros mistérios da floresta.

Turismo na Amazônia, feito pela repórter Elis Carvalho
A árvore Samaúma vovó é gigantesca e dizem que tem mais de mil anos . Crédito: Elis Carvalho

E o Bata explica pacientemente cada detalhe durante os 10 km de caminhada até chegar a árvore Samaúma vovó, que é gigantesca e dizem ter mais de mil anos. Abraçar a oponente samaúma é energizante! Depois ainda caminhamos mais alguns minutos até o Igarapé do Jamaraquá, um estreito rio no meio da floresta com águas transparentes: um dos lugares mais lindos que eu já estive.

No fim do passeio, retornamos à aldeia. A dona Socorro, esposa do Bata, já havia preparado um delicioso almoço, bem simples e com um tempero maravilhoso. Depois, tomamos um banho em banheiros feitos de madeira do lado de fora, comum nas aldeias. Pela noite caminhamos na praia de rio, fizemos fogueira, bebemos algumas cervejas e dormimos em um redário.

Turismo na Amazônia, feito pela repórter Elis Carvalho
A dona Socorro, esposa do Bata, nos preparou um delicioso almoço, bem simples e com um tempero maravilhoso. Crédito: Elis Carvalho

E foi pela noite que vivi uma das experiências mais loucas dessa viagem pela floresta. Acordei com vontade de ir ao banheiro, mas não tive coragem de descer da rede. Não apenas pela escuridão da mata. Mas pelo alto barulho que eu ouvia do lado de fora. De início, ainda sonolenta, cheguei a pensar que fosse o som de um forte vento circulando pelas árvores. Só depois de um tempo percebi: eram macacos bugios. E eram muitos! Só tive coragem de ir ao banheiro na companhia de dois amigos, que também estavam com medo.

CARIMBÓ, PRAIAS E FAZENDAS

No dia seguinte, retornamos ao Centro de Alter do chão, onde fiz uma pequena compra de alguns alimentos por R$ 30 e relaxei em mais um dia de praia. Pela noite fui ao Espaço Alter do Chão curtir uma festa de Carimbó. Que noite linda! Pessoas de todas as idades dançando com sorriso no rosto. Mulheres girando suas saias rodadas, enquanto eram envolvidas pelo cortejo dos dançarinos. Umas das coisas mais bonitas que vi e vivi.

No dia seguinte fechei no próprio hostel um passeio que incluía praias de rio, além de visita à Comunidade Coroca. Paguei R$ 180 pelo pacote, que incluía almoço. Com cerca de 20 famílias as margens do Rio Arapiuns, os moradores vivem da apicultura, artesanato e turismo.

Turismo pela Amazônia feito pela repórter Elis Carvalho
Caribe amazônico: as praias de Alter do Chão são desertas, paradisíacas e incríveis. Vale a pena cada ilha parada. Crédito: Elis Carvalho

Foi nesse dia que entendi o apelido de caribe amazônico. As praias são desertas, paradisíacas e incríveis. Vale a pena cada ilha parada. No meio da tarde, uma pausa para almoço na Coroca: arroz, feijão com legumes, farofa típica da região, salada e um enorme peixe de rio. Tudo muito bem temperado e delicioso. Para acompanhar, suco natural de cupuaçu.

Matéria de turismo na Amazônia feita por Elis Carvalho
No Lago da Coroca há criação de quelônios, conhecidas na região como tartarugas da Amazônia . Crédito: Elis Carvalho

Depois, uma pequena trilha nos levou ao Lago da Coroca, onde há a criação de quelônios, conhecidas na região como tartarugas da Amazônia. Ao chegarmos, já víamos algumas delas. Mas foi após subirmos na balsa que vai até o meio do lago para alimentá-las que o bando apareceu. Dezenas de tartarugas lindas, exibidas e livres. Após comerem, elas voltam para a escuridão das águas Arapiuns.

Matéria de turismo na Amazônia feita por Elis Carvalho
Também fizemos uma pequena trilha até a criação de abelhas, sendo a maior parte delas da espécie Jandaíra - sem ferrão . Crédito: Elis Carvalho

Por último, fizemos uma pequena trilha até a criação de abelhas, sendo a maior parte delas da espécie Jandaíra - sem ferrão. Fizemos observação das caixinhas com criação de mel local e pudemos comprar potes no fim do passeio. Além do mel, a lojinha local - que só aceita dinheiro em espécie - ainda vende peças feitas a partir das palhas e o tucumãzeiro – palmeira espinhosa da região.

DE VOLTA AO NAVIO: UM LONGO PAPO SOBRE O AYAHUASCA

Consegui uma carona do barco até Santarém, onde fui comprar a passagem de navio para Manaus. Já sabendo que a lábia faz toda diferença, dessa vez eu pechinchei de guichê em guichê, até conseguir uma passagem por R$ 150.

Enquanto tentava, conheci o Junior, rapaz que estava na mesma situação que eu. E talvez a lábia dele tenha sido melhor, pois conseguiu passagem por R$ 100 na mesma empresa. Acabou que ficamos amigos e trocamos várias ideias durante a viagem.

O Junior era morador de Alter do Chão e estava indo à Manaus para ajudar a namorada nos últimos dias de gravidez. Foi com ele que ouvi pela primeira vez de um local sobre o ayahuasca, bebida enteógena produzida a partir da combinação do Banisteriopsis caapi, cipó ativo da região amazônica, com várias plantas, em particular a Psychotria viridis e a Diplopterys cabrerana.

O chá, popularmente conhecido como santo-daime, tem produção e consumo em todo o mundo, em especial nos países ocidentais, sendo frequentemente associado a rituais de diferentes grupos sociais, além de fazer parte da medicina tradicional na Amazônia. 

Eu confesso que nunca tinha me interessado pela bebida. Mas durante os dois dias no barco até Manaus, conversamos muito sobre o assunto. E quanto mais eu me aproximava do Amazonas, mais interesse eu tinha pelo ayahuasca.

Os locais falam da bebida com muito respeito, que diferente do que muita gente pensa nada tem a ver com drogas alucinógenas. Segundo eles, a bebida faz parte de um ritual de autoconhecimento, gerador de divindade interna, desintoxicação e ampliação da percepção.

O assunto me causou muito interesse durante a viagem passei a ler sobre a bebida (dando prints em matérias no celular quando o navio passava por alguma cidade que dava sinal ao aparelho). Eu não sabia, mas voltaria a ouvir mais sobre o assunto assim que pisasse em Manaus.

Pelos dois dias no navio, eu gastei R$ 50 reais com alimentação.

Matéria de turismo na Amazônia feita por Elis Carvalho
Fui ao “terraço” do navio me despedir e vi o encontro das águas em um dos momentos mais emocionantes da viagem. Crédito: Elis Carvalho

Após dois dias pelo rio, acordei no barco animada por já estar chegando em Manaus. Arrumei minhas coisas, conversei um pouco mais sobre a vida com o Junior e fui ao “terraço” do navio me despedir. Vi o encontro das águas em um dos momentos mais emocionantes da viagem.

Cheguei ao posto de Manaus em um fim de tarde lindo e logo me hospedei no Discoveries Hostel, o melhor custo benefício que encontrei na região, com diárias a R$ 30 pelo quarto compartilhado e R$ 45 no privativo. Conheci os responsáveis pelo hostel, que também fazem passeios na região. O Neto, cria do Amazonas, e o Billy, indígena natural da Guiana Inglesa.

No primeiro dia não fiz nenhuma atividade. Fiz compras no mercado ao lado do hostel, gastando R$ 50 para cozinhar minha comida nos próximos dias. E mais uma vez pude conversar com um local sobre o ayahuasca. Foi o Neto que me explicou que o ritual possui algumas vertentes e núcleos, todos fiscalizados pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD). 

As mais conhecidas são: o Santo-daime, com uma forte presença musical, o que influencia muito no resultado final; a União do Vegetal, que baseia-se no princípio da reencarnação evolucionista; a Barquinha, composta por centros espíritas; e ainda os rituais comuns nas tribos, onde - diferente das sessões na cidade, são ingeridas doses maiores e mais fortes do chá, sendo necessário convite dos indígenas para participar. 

Mais uma vez ouvi um relato muito respeitoso sobre a bebida. Como participante, o Neto me explicou que para a utilização dessa medicina é necessário procurar um núcleo autorizado pelo CONAD, com profissionais preparados e com autorização para esse atendimento, onde é feita uma entrevista para constar se a pessoa tem todos os requisitos para participar, como ausência de doenças psicológicas. Ele conta que, infelizmente, muita gente procura o chá apenas por curiosidade, o que é considerado um erro.

“Muita gente me pergunta sobre o chá dizendo que tem curiosidade. Essa é a palavra chave para eu saber que a pessoa não está preparada para o ritual. O uso do ayahuasca não pode ter relação com curiosidade e muito menos vontade de usar alucinógenos. Para ter acesso à bebida é necessário sentir um chamado, pois é algo levado muito a sério por nós, algo divino. Quem faz o uso irresponsável ou possui uma vida desregrada costuma passar mal e vomitar. Aqueles que fazem o uso responsável e possuem uma vida um pouco mais regrada, conseguem ter uma boa experiência de autoconhecimento e purificação. Infelizmente ainda há muito preconceito, devido informações falsas sobre esse assunto. O ayahuasca é algo espiritual, ancestral, que nos dá conexão com a natureza de forma que muda nossos conceitos de vida”, explicou o Netto.

VIVENDO EM MEIO A FLORESTA AMAZÔNICA

Turismo na Amazônia, feito pela repórter Elis Carvalho
Casa de ribeirinhos onde ficamos hospedados, na comunidade Arara, em meio a floresta. Crédito: Elis Carvalho
Turismo na Amazônia, feito pela repórter Elis Carvalho
Vista da casa de ribeirinhos onde ficamos hospedados, na comunidade Arara, em meio a floresta. Crédito: Elis Carvalho

Acordei bem cedo para ir à floresta com o Billy. Um dia na mata, com hospedagem em casas ribeirinhas e acampamento na mata, atividades durante todo o dia e noite, além de todas as refeições com comidas típicas e água custa R$ 250 por dia. E já adianto que cada centavo vale muito a pena.

Fomos para a comunidade Arara, pelo município Careiro do Castanho. Comigo estava um casal europeu: a francesa Olívia e o inglês Tim, pessoas adoráveis.

Chegamos de barco à casa de um ribeirinho. No caminho, a natureza mais exuberante que eu já vi. Animais pareciam nos dar as boas vindas, exibindo-se na floresta. Me emocionei de verdade. O lugar era lindo, exatamente no meio da mata.

Arrumamos o quarto com redes e mosquiteiros. Almoçamos, saímos para fazer reconhecimento da área em canoa e fizemos observação de botos. Incrível perceber que por baixo daquela água escura, semelhante a chá preto, há tanta vida. Até mesmo quando os botos não pulam, percebemos que eles estão submersos, devido as bolhas visíveis sob a água. Voltamos para a casa, tomamos banho e jantamos.

Matéria de turismo na Amazônia feita por Elis Carvalho
Saímos para fazer reconhecimento da área em canoa e fizemos observação de botos. Crédito: Elis Carvalho

A questão do banheiro é algo que vale a pena destacar. Banhos e necessidades fisiológicas são realizadas do lado de fora da casa, em pequenos cômodos feitos de madeira, sem portas - com visão para a mata. Os vasos sanitários são feitos de forma sustentável, a “descarga” é feita por serragem e jogada em um profundo buraco onde o vaso é instalado. Já o banho, é realizado com água puxada pelo rio através de uma bomba.

Nos dias seguintes vivi outras experiências inesquecíveis: canoagem a remo pela manhã e passeio de barco a motor pela tarde; caminhadas pela floresta respirando o ar mais puro que já senti; botos por todo lado…

Para qualquer pessoa da cidade, aquela realidade é uma das coisas mais diferente já vividas. Fiquei três dias nessa rotina. Pesca de piranha com vara para garantir o almoço. Pesca noturna com fisga, de forma bem primitiva, para garantir a janta.

Turismo na Amazônia, feito pela repórter Elis Carvalho
Fizemos focagem de jacarés pela noite em meio aquela escuridão da floresta, onde a única luz era da lanterna e das estrelas no céu. Crédito: Elis Carvalho

Também fizemos focagem de jacarés pela noite em meio aquela escuridão da floresta, onde a única luz era da lanterna (que pouco usávamos) e das estrelas no céu. Éramos apenas nós navegando pelo rio em meio da floresta amazônica. Mas nunca estávamos sozinhos. Os diversos sons na mata e no rio nos davam a certeza de que que tínhamos incontáveis companhias. Depois, voltávamos para nosso redário.

Mas era apenas um treino de adaptação para a verdadeira noite na floresta. Em nosso penúltimo dia, acordamos cedo e seguimos de barco pelo rio.

_Para aqui. Vamos descer! Anunciava o Billy.

Deixamos o barco nas margens do rio e caminhamos por cerca de meia hora. Eu nunca vou esquecer a sensação de estar ali, no meio da mata, sem qualquer sinal de tecnologia, exposta a qualquer coisa. Qualquer coisa.

Turismo na Amazônia, feito pela repórter Elis Carvalho
O acampamento no meio da mata é feito apenas com redes e mosquiteiros. Crédito: Elis Carvalho

Paramos em um local escolhido pelo guia e montamos o acampamento, que consistia basicamente em redes penduradas em madeiras de árvores, além de mosquiteiro. Tínhamos também uma fogueira e uma mesa, tudo improvisado com madeiras encontradas caídas pela floresta.

Após montar o acampamento, caminhamos, andamos de barco e fomos pescar nossa comida. Na volta, Billy fez pratos de folha de bananeira, sob prato de palha e talheres de bambu. O peixe, limpo e assado na fogueira apenas com sal, foi - inacreditavelmente - um dos mais gostosos que comi na vida.

Turismo na Amazônia, feito pela repórter Elis Carvalho
Turismo na Amazônia, feito pela repórter Elis Carvalho. Crédito: Elis Carvalho

Após a janta, dormimos. O meu teto eram as estrelas e a lua em meio as copas das árvores. Fiquei por alguns minutos observando o céu e ouvindo os macacos bugios antes de cair no sono. Que noite!

Acordei pronta para voltar à cidade. Numa experiência quase espiritual, ali eu percebi que a Natureza era para mim como uma deusa. Algo superior, capaz de me conectar com os sentimentos mais profundos. Sem vaidade, sem negatividade, sem medo. Apenas a sensação de paz, liberdade, companheirismo e imenso respeito por tudo. A Amazônia transforma. E eu sabia que nunca mais seria a mesma. Para essa experiência inesquecível, que durou 15 dias, gastei um total de cerca de R$ 1.928. 

Matéria de turismo na Amazônia feita por Elis Carvalho
Os botos ficam soltos pelo Rio Negro e se aproximam de flutuantes quando percebem a oferta de peixes. Crédito: Elis Carvalho

A Gazeta integra o

Saiba mais

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.

A Gazeta deseja enviar alertas sobre as principais notícias do Espirito Santo.