O 8º Círculo do inferno, da 'Divina Comédia', em representação de Sandro Botticelli
O 8º Círculo do inferno, da "Divina Comédia", em representação de Sandro Botticelli. Crédito: Reprodução/Wikimedia

700 anos da morte de Dante: o legado e o inferno dos dias

Com sua magistral "Divina Comédia", Dante defende o primado da ética e das virtudes na condução da vida. Trata-se, como bem descreveu Otto Maria Carpeaux, de um "libelo contra os vícios do tempo"

Tempo de leitura: 4min
Publicado em 11/12/2021 às 02h00

José Antonio Martinuzzo - É doutor em Comunicação, pós-doutor em Mídia e Cotidiano, professor na Ufes, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória

Neste 2021, o calendário das efemérides planetárias marca os 700 anos da morte de Dante Alighieri (1265-1321). Considerado "pai da língua italiana", Dante eternizou-se com a sua Divina Comédia, poema que, entre outros, se tornou a referência simbólica do que seja o destino post mortem. Sua descrição de inferno, purgatório e paraíso constituiu definitivamente o imaginário da existência.

A "Divina Comédia" sempre foi uma metáfora de aspectos da vida sob o Sol. Mas ao que parece, sete séculos depois, por aqui há cada vez menos espaço para o paraíso - vá lá, purgatório que seja! É exatamente a redução infame da atualidade às principais marcas do inferno dantesco que promove uma outra ligação - trágica, para dizer o mínimo - destes tempos com o legado poético-político de Dante.

Triste vinculação, mas a inominável e surreal escalada das mais variadas violências e brutalidades, sem falar das inacreditavelmente pegajosas e propagáveis fake news, faz parecer que habitamos verdadeiramente um "reinado de Lúcifer" - sem folga nem mesmo no contexto de uma pandemia mortífera.

O inferno descrito por Dante, que na narrativa tem como guia inicial de périplo o poeta Virgílio, é uma imensa cratera nas profundezas da Terra, aberta pelo impacto da queda do corpo de um anjo expulso do Paraíso. Em formato de funil, esse abismo vai se afinando em círculos dedicados a pecados e pecadores específicos. Do mal menor ao mal maior, chega-se ao fundo do poço, à presença do próprio Coisa-Ruim, que tem o encargo de "Rei do Inferno".

São quatro grandes círculos de pecados imperdoáveis ("incontinência", "violência", "fraude" e "traição"). Cada círculo tem ressaltos concêntricos, com giros e valas determinados para cada tipo de falta, de modo que pecadores da mesma estirpe estejam eternamente gozando de companhia compatível.

As faltas narradas na peculiar epopeia do século XIV foram codificadas a partir da doutrina aristotélica. A despeito de sua impositiva atualização ético-moral e jurídico-política, suas matrizes se mantêm atuais. Isso se pode ver neste tempo atravessado pela falta de limites, extremismos e desvirtudes; por destrutivos ataques fratricidas e tantas violências físicas e simbólicas; pela perversão da pós-verdade, suas mentiras e enganações; e pela falta de compaixão, pelo individualismo nefasto e pela extinção crescente da empatia como norte vital.

Esse incremento do arcaico infernal em nossas vidas, por incrível que possa parecer, conta com um recurso de última geração. Nesta era em que se constitui uma outra dimensão existencial, os ciberterritórios, cuja porção mais visível são as teias formadas pelas redes sociais digitais, é terrível a percepção de que a invenção de um verdadeiro "continente de bytes" se dê basicamente sob inspiração de posturas abomináveis, fatais ao humanismo, com pouco ou nenhum espaço para fruições "paradisíacas".

É aterrorizante perceber que esse inferno das nuvens esteja deixando na poeira o inferno das profundezas, incrementando com seus bafos de enxofre digital o fogo que faz arder as pulsões de vida, criando uma vasta terra arrasada onde vicejam as pulsões de morte e suas mais horrendas criações destrutivas.

Numa dual existência digital-presencial e enredados em fake news, horrores estruturais, desamparos atordoantes, egoísmos letais, entre outros pecados tão atuais de cepas tão ancestrais, caminhamos, aturdidos, iludidos ou perversos, num verdadeiro inferno de Dante, fazendo jus, inclusive, à inscrição que o poeta colocou na entrada do reino do mal: “Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate”.

Com sua magistral obra, Dante defende o primado da ética e das virtudes na condução da vida. Trata-se, como bem descreveu Otto Maria Carpeaux, de um "libelo contra os vícios do tempo", escrito pelo "maior poeta político, naquele alto sentido de política". Genial e assustadoramente atual.

Sem decisões de aspecto civilizatório, que impliquem posicionamentos consequentes e urgentes, aqui e mundo afora, nos âmbitos dos direitos humanos e civis, da inclusão e da diversidade, da institucionalidade política, da democracia, da sustentabilidade, o nosso horizonte ofertará cada vez menos possibilidades de "igualdade, liberdade e fraternidade".

Sem uma reinvenção dos modos de existir, sem a construção de um caminho que nos desvie das paragens infernais, o poético encontro com Beatriz, a eterna amada que guiará Dante pelo Paraíso da Divina Comédia, será uma potência cada vez mais distante ou mesmo impossível para nós, mortais que, por omissão ou ação, estamos a alimentar sem parar as chamas de um onipresente inferno dos dias.

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