Publicado em 21 de setembro de 2020 às 12:05
A Organização das Nações Unidas (ONU) chega aos 75 anos, celebrados nesta semana nos debates de sua Assembleia Geral, sob as sombras da pandemia e da polarização da disputa geopolítica entre Estados Unidos e China. >
A Covid-19 turvou o clima de celebração, levando a discussões sobre o futuro pós-doença e tornando a reunião anual um evento virtual.>
A partir desta terça (22), falarão líderes por meio de teleconferência, a começar por Jair Bolsonaro --a tradição dá a primeira palavra ao presidente brasileiro, neste caso ironicamente um crítico usual de organismos internacionais.>
Mas é a rixa entre americanos e chineses que marca o momento da organização, que de resto teve sua existência definida pelo conflito.>
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Sua antecessora, a Liga das Nações, havia surgido em 1919 dos escombros da Primeira Guerra Mundial com o desígnio de evitar uma repetição da tragédia que ceifara 20 milhões de vidas.>
Fracassou, com uma conta talvez quatro vezes superior de mortes no conflito seguinte, de 1939 a 1945.>
Com o advento da Era Atômica, parecia imperativo criar o sonhado Parlamento das nações e evitar algo ainda pior.>
Não é inusual que novamente um contencioso esteja a demarcar o futuro da entidade.>
A Guerra Fria 2.0 entre EUA e China tornou a ONU um campo de batalha particular, assim como já havia sido durante a versão 1.0 entre americanos e soviéticos.>
Naquele 24 de outubro de 1945, quando a entidade foi criada em San Francisco, o objetivo final era a manutenção da paz mundial.>
Não é possível creditar a ausência de uma Terceira Guerra Mundial às Nações Unidas, claro, mas a simples existência de um fórum para a esgrima internacional já a tornava relevante. O palco central, seu Conselho de Segurança.>
Ele é formado pelos vitoriosos reais da Segunda Guerra (EUA, União Soviética/Rússia e Reino Unido) e pelos levados de carona (França e China), não por acaso hoje as principais potências atômicas.>
Seu poder de veto é um instrumento poderoso, usualmente combinado entre Moscou e Pequim, eixo alternativo ao Ocidente.>
Nos últimos cinco anos, os russos apertaram o botão do não 14 vezes, os chineses, 5, e os americanos, 2. Franceses e britânicos não o fazem desde 1989.>
A alteração da dinâmica internacional, em especial após o fim da Guerra Fria em 1991, implicou a discussão sobre a reforma do conselho.>
Há uma questão clara de representatividade. Quando a ONU foi criada, o conselho com seus então 11 membros (incluindo os temporários) refletia 22% dos países filiados. Agora, seus 15 integrantes são apenas 8% do universo da Assembleia Geral.>
O Brasil, candidato natural a um assento permanente assim como Índia, Alemanha e Japão, fez disso pedra de toque no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010).>
Foi ignorado, e hoje a perda de peso relativo da ONU não parece animar a diplomacia.>
Mais: sob Ernesto Araújo, a chefia do Itamaraty passou a ver órgãos multilaterais como cabeças da Besta do Apocalipse de um certo globalismo com coloração marxista.>
Como usual, tal discurso emula o que diz Donald Trump, o presidente dos EUA.>
O americano reclama baseado na sua contribuição ao orçamento de US$ 3 bilhões (R$ 16 bilhões) anuais da ONU: 22% vêm da nação mais rica da Terra.>
Trump, o segundo a falar na terça, é crítico contumaz do multilateralismo e deverá mirar problemas específicos dos americanos, como o programa nuclear do Irã, país com o qual quase foi à guerra em janeiro deste ano.>
Aí ele difere dos chineses. O dirigente Xi Jinping, pelo que adiantou sua chancelaria, irá discursar em quarto lugar e fará a defesa dos entes multilaterais globais. Essa tem sido uma constante da ditadura comunista nos últimos anos.>
Pequim saltou de contribuição ínfima, em 2000, para o segundo lugar (12%) em 2019.>
Além disso, os chineses têm trabalhado sua presença nas agências da ONU, defendendo candidaturas próprias ou de aliados, como nunca antes.>
Seu apoio ao titular da Organização Mundial da Saúde (OMS) levou à crítica americana de que a entidade acobertou o papel visto como falho de Pequim no início da pandemia.>
Ao fim, os Estados Unidos anunciaram a saída da entidade, levando a especulações sobre seu comprometimento com a ONU como um todo.>
Noves fora arroubos ideológicos, há uma crítica objetiva acerca da efetividade das Nações Unidas e de algumas de suas 15 agências e 5 entidades associadas.>
"Os organismos multilaterais não têm conseguido dirimir as disputas que vêm ocorrendo ao redor do mundo", disse na sexta-feira em uma "live" o vice-presidente brasileiro, Hamilton Mourão.>
Essa avaliação é relativamente compartilhada pelo secretário-geral da ONU, o português António Guterres.>
Em entrevistas recentes, ele ressalta que EUA, China e Rússia nunca tiveram uma relação tão disfuncional.>
Ele tem defendido a criação de um "multilateralismo inclusivo", unindo nações a empresas, ONG, bancos, centros de estudos e a academia, dado que a boa vontade de governos parece limitada.>
Parece incerto o quanto isso será funcional, contudo.>
As unidades do chamado sistema ONU, como a Organização Mundial do Comércio, são bastante impotentes ante ante a disputa encarniçada entre Washington e Pequim.>
Mesmo o Conselho de Segurança nada pôde fazer para impedir que os EUA invadissem o Iraque em 2003.>
Em qualquer emergência envolvendo seus membros, seja no mar do Sul da China ou num embate entre a Otan (aliança militar ocidental) e a Rússia no Báltico, parece improvável que poderá conter os acontecimentos.>
A guerra civil na Síria ou qualquer um dos 33 grandes conflitos armados em curso no mundo não pararam por meio de exortações da ONU.>
Os tribunais internacionais, salvo aqueles criados para conflitos específicos como o da ex-Iugoslávia, estão longe de se firmar.>
A Corte Internacional de Justiça cuida de demandas entre países, e o Tribunal Penal Internacional, de indivíduos que cometem crimes contra a humanidade.>
Os limites práticos da entidade a perseguem há anos. Sua burocracia, também.>
A ONU não pode contratar um assessor administrativo sem que o famoso 5º Comitê, com gente de todos os 193 países-membros, aprove.>
Isso tudo acaba por eclipsar o papel imenso que a ONU tem, em especial naquilo onde ela é mais funcional.>
Hoje, 80 milhões de pessoas, ou aproximadamente 1% da população mundial, vivem sob o mandato do Acnur (Alto Comissariado para Refugiados da ONU). É o maior índice da história.>
São pessoas atendidas onde os governos nacionais não conseguem dar conta.>
O órgão faz 50 anos em dezembro, e sua convenção de 1951 inicialmente tratava de afetados pela Segunda Guerra Mundial. Em 1967, seu mandato foi expandido e, em 2003, tornado permanente - até então, tinha de ser renovado a cada três anos.>
"O trabalho, infelizmente, está vinculado à sequência de conflitos. Ele é fundamental", diz o porta-voz do Acnur no Brasil, Luiz Fernando Godinho. Hoje são 130 países atendidos, em 507 localidades.>
Não só guerras políticas são motivo para emergência: a crescente crise climática tem aumentado o número de refugiados mundo afora, e em breve veremos deslocamentos populacionais por conflitos devido à escassez de água.>
O trabalho de agências como o Acnur são a principal bandeira dos defensores da ONU, juntamente à voz que é dada a países de menor envergadura política.>
Como diz um diplomata ocidental que trabalha na ONU, que pediu para não ser identificado, o melhor das Nações Unidas é a ideia de que ela existe.>
Como ela irá sobreviver a uma nova era de polarização na ordem mundial é outra questão. Os EUA, mesmo que Trump não se reeleja em novembro, tendem a seguir em colisão com a China.>
Um presidente Joe Biden, por mais que os democratas tenham uma tradição de afinidade maior com a retórica multilateral, dificilmente vai tirar Washington de seu rumo atual. Guterres terá bastante trabalho pela frente.>
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