Publicado em 15 de maio de 2025 às 15:39
Nas aulas de história, aprendemos como o Brasil foi colonizado pelos portugueses a partir do início de 1500 — e como se deu a dinâmica entre indígenas, europeus e africanos pelos séculos seguintes.>
Mas um novo estudo, que acaba de ser publicado na prestigiada revista Science, conseguiu encontrar pistas desse passado diretamente no DNA dos brasileiros de hoje.>
Ao fazer o sequenciamento do genoma completo de 2,7 mil pessoas, os cientistas detectaram diversas evidências relacionadas aos fluxos migratórios, à violência e à miscigenação.>
Um dos achados, por exemplo, revela a participação significativamente maior de mulheres indígenas e africanas e de homens europeus na ancestralidade do que consideramos hoje o povo brasileiro (entenda mais detalhes a seguir).>
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"A gente conhece a história a partir dos livros e das aulas", avalia a pesquisadora Lygia da Veiga Pereira, uma das autoras do estudo e professora do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP).>
"Mas conseguir enxergar os efeitos disso no nosso DNA é algo muito potente, muito forte", complementa ela.>
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A investigação envolveu 24 pesquisadores de 12 instituições diferentes. Ela é um dos primeiros resultados de um projeto chamado "DNA do Brasil", que começou em 2019 e tem como objetivo construir um banco de dados sobre a genética de brasileiros.>
Essas informações ficarão sob controle do Ministério da Saúde e serão usadas para diversos tipos de trabalhos acadêmicos — como aqueles que tentam entender as mutações ligadas a doenças mais frequentes no DNA da população e as formas de diagnosticá-las e tratá-las.>
Os pesquisadores pretendem compilar o sequenciamento do genoma completo de cerca de 12 mil brasileiros, para que seja possível ter uma representatividade suficiente de todas as regiões do país e de diversas comunidades.>
A pesquisa recém-publicada traz os resultados preliminares desse esforço. Ela leva em conta o perfil genético de 2.723 indivíduos que vêm de áreas urbanas, rurais, ribeirinhas e, segundo os autores, "representam diversas origens étnicas".>
Vale lembrar aqui que o DNA é o conjunto de informações que determina boa parte de nossas características físicas e psicológicas, além da propensão a desenvolver certas enfermidades.>
Essas moléculas ficam organizadas nos cromossomos, que estão guardados no núcleo de todas as células que compõem nosso corpo (com exceção dos espermatozoides e dos óvulos).>
O genoma que carregamos é herdado de nossos progenitores — metade da mãe, metade do pai.>
Isso permite entender como se deu a combinação dos genes a cada geração. Afinal, nossos pais herdaram o material genético deles de nossos avós, que herdaram de nossos bisavós, e assim por diante.>
E, com a evolução do conhecimento científico e das tecnologias de sequenciamento, hoje é possível estudar e até reconstruir parte do passado através do DNA.>
"Nós conseguimos contar não apenas a história dos últimos 500 anos, mas também o que acontecia antes disso nas Américas e também na África", acrescenta a geneticista Tábita Hünemeier, que também coordenou o projeto.>
Uma das primeiras constatações do trabalho reforça a ideia de como os primeiros séculos de colonização do Brasil foram marcados pelo que os pesquisadores classificam como "relacionamentos assimétricos".>
Para entender esse assunto, precisamos conhecer dois conceitos importantes: as linhagens do DNA mitocondrial e do cromossomo Y.>
A mitocôndria é uma estrutura responsável pela produção de energia dentro das células. Ela carrega genes próprios, que ficam separados do restante do genoma, e são chamados de DNA mitocondrial (ou mtDNA).>
Mas o importante aqui é que nós herdamos o mtDNA exclusivamente das nossas mães.>
Essa informação permite estabelecer, portanto, que existem linhagens ininterruptas formadas só por mulheres ao longo de diversas gerações e milhares de anos.>
Afinal, toda filha tem uma mãe. Mas nem toda mãe tem uma filha: se a mulher gerar um menino, ou não tiver descendentes, o mtDNA dela não será passado adiante.>
Em termos genéticos, portanto, é possível traçar quem é a mãe, da mãe, da mãe, da mãe… De forma sucessiva, ao longo dos tempos.>
Já a linhagem do cromossomo Y representa a mesma coisa, só que do lado masculino dessa história.>
Em linhas gerais (e com algumas exceções), os caracteres sexuais de seres humanos são definidos por esses cromossomos: XX em mulheres, XY em homens.>
Nesse sentido, é possível rastrear, por meio do cromossomo Y, quem é o pai, do pai, do pai, do pai…>
O estudo sobre o DNA do Brasil revelou uma "vasta maioria", que supera os 70%, de ancestralidade europeia nas linhagens do cromossomo Y (ligadas ao sexo masculino).>
Já as linhagens mitocondriais (ligadas ao sexo feminino) trazem com mais força a ancestralidade africana (presente em 42% das amostras) ou indígena (35%).>
Segundo os autores, o achado revela um passado marcado pelos tais relacionamentos assimétricos, que envolveram, de um lado, homens europeus e, de outro, mulheres indígenas ou africanas.>
"E isso ilustra como os dados genômicos ajudam a revelar a história da colonização e suas consequências na diversidade genética da população dos dias de hoje", escrevem os pesquisadores.>
O estudo lembra que "a maioria dos primeiros colonizadores europeus eram homens" e devemos considerar "o histórico da colonização, que gerou uma alta mortalidade entre homens indígenas e africanos, e da violência sexual voltada às mulheres desses grupos".>
Hünemeier pontua que, mais recentemente, entre o fim do século 19 e o começo do 20, a tendência dos relacionamentos assimétricos foi substituída por um padrão seletivo.>
"Ou seja, as pessoas passaram a se casar preferencialmente dentro do mesmo grupo étnico. Mestiços se casam com mestiços, brancos com brancos, indígenas com indígenas", informa a pesquisadora, que atua no Laboratório de Genômica Populacional Humana da Universidade Pompeu Fabra em Barcelona, na Espanha.>
"Isso revela uma outra face do processo de segregação, agora relacionada às condições socioeconômicas e culturais desses grupos", complementa ela.>
O estudo lembra que a colonização europeia das Américas deu início "ao maior deslocamento intercontinental de populações da história da humanidade".>
Entre os séculos 15 e 20, aproximadamente 5 milhões de europeus vieram ao Brasil — e forçaram pelo menos 5 milhões de escravizados africanos a tomar o mesmo rumo.>
Quando os primeiros europeus chegaram à costa brasileira, estima-se que 10 milhões de indígenas habitavam o território e falavam mais de mil idiomas diferentes. Os dados mostram que entre 83% e 98% desta população foi dizimada.>
Hünemeier destaca que as populações de várias partes do mundo que se encontraram e se misturaram no Brasil a partir do século 16 estavam separadas há cerca de 15 mil anos.>
Vale lembrar aqui que o ser humano surgiu na África e, ao longo de milhares de anos, viajou e se estabeleceu por todos os continentes — a começar pela Europa e pela Ásia, por questões geográficas.>
As evidências apontam que a entrada dos primeiros homens e mulheres nas Américas se deu a partir da Beríngia, uma enorme "ponte" de terra e gelo que se formou em períodos de glaciação entre a Sibéria (na atual Rússia) e o Alasca (na América do Norte).>
A partir dali, os grupos se espalharam por todo o continente americano, inclusive pelos territórios do que hoje chamamos de Brasil, ao redor de 13 mil anos atrás.>
A pesquisadora Maria Cátira Bortolini, que também assina o artigo na Science, lembra que a América é um continente com diversos climas e ambientes — do calor tropical às nevascas, das planícies desérticas às montanhas e às florestas tropicais.>
A diversidade genética dos primeiros americanos — ou daqueles povos que habitavam a Beríngia e se deslocaram em direção à América do Norte — foi fundamental para permitir essa adaptação.>
"As populações que chegaram aqui foram muito bem sucedidas em colonizar todo esse território num espaço de tempo relativamente curto", diz a especialista, que é professora titular do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).>
A partir do ano 1500 da era comum, aconteceu a chegada dos europeus.>
Pouco depois, ainda no século 16, milhões de africanos — muitas vezes advindos de povos que nunca chegaram a ter qualquer contato em seu continente de origem — começaram a ser trazidos à força, como escravizados.>
"Nosso trabalho tenta entender como essa História antiga, dos povos originários, se acopla com a entrada dos europeus e o processo escravagista", contextualiza Hünemeier.>
"Como tudo isso embaralhou os genomas das pessoas de hoje? E quais os impactos que isso traz em termos de diversidade e saúde?", questiona ela.>
A pesquisa recém-publicada conseguiu detalhar como diferentes subgrupos contribuíram para a formação do povo brasileiro.>
Das ancestralidades europeias, por exemplo, é possível observar uma grande influência das populações que vêm do sul do Velho Continente — embora indivíduos no Rio Grande do Sul carreguem uma proporção maior de genes relacionados ao norte da Europa.>
"Esses resultados são consistentes com os registros históricos, que mostram uma predominância da imigração a partir de Portugal e Itália [sul da Europa], além do fato de a região Sul do Brasil ter recebido muitas pessoas da Alemanha e do norte da Itália durante os séculos 19 e 20", escreve os autores.>
Sobre a ancestralidade africana, a investigação revelou uma "alta diversidade", com participação de grupos que vieram das porções oeste, leste, norte e sul desse continente.>
"Isso sugere que grupos que nunca tiveram contato dentro da África se misturaram no Brasil", apontam os cientistas.>
Já a ancestralidade indígena foi vista com mais força na região Norte, especialmente nos Estados do Amazonas e do Pará.>
"A vasta maioria dos indígenas compartilham ancestrais comuns de grupos etnolinguísticos do tupi e do karib, na região amazônica", detalham os especialistas.>
A pesquisa também conseguiu localizar e sincronizar algumas pistas genéticas com eventos que marcaram a História do Brasil.>
Um exemplo: houve um grande pulso de miscigenação entre diferentes populações num período que compreende cinco a dez gerações passadas.>
"Isso corresponde à época que vai de 1750 a 1875 [...] e corresponde a eventos demográficos significativos no Brasil, como o Ciclo do Ouro, que intensificou abruptamente a imigração portuguesa para o Brasil", notam os autores.>
Após o boom da mineração, houve uma "tremenda expansão urbana, com aumento das taxas de imigração".>
"Nesse mesmo período, os mercenários bandeirantes exploraram o interior do Brasil em busca de ouro, pedras preciosas e a escravização de indígenas.">
"Além disso, a Família Real portuguesa fugiu ao Brasil em 1808 como resultado das guerras napoleônicas e estabeleceu o Rio de Janeiro como a capital do império. Isso contribuiu para a expansão do tráfico escravagista.">
Ainda no século 19, durante o período do império, o governo brasileiro implementou políticas para encorajar a imigração, particularmente de pessoas do norte da Europa, para o Sul e o Sudeste do país.>
Para os pesquisadores, esses detalhes ajudam a entender os motivos de o Brasil ter "a população mais miscigenada do mundo".>
"E essa interação histórica única molda um mosaico complexo de diversidade genética", concluem eles.>
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