Publicado em 19 de dezembro de 2025 às 06:44
Quanto o governo deixa de arrecadar com renúncias fiscais que beneficiam principalmente a fatia mais rica da população?>
Nas contas da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco Nacional), em estudo inédito, esses valores devem chegar a R$ 618,4 bilhões em 2026 — ou quase quatro vezes o orçamento previsto para o Bolsa Família no próximo ano (R$ 158 bilhões).>
As renúncias fiscais — também chamadas de gasto tributário na linguagem mais técnica — são valores que o governo deixa de arrecadar em impostos, ao conceder isenções, anistias, subsídios e benefícios tributários para setores econômicos, atividades ou grupos sociais específicos.>
"Alguns benefícios são importantes", pondera Mauro Silva, presidente da Unafisco.>
>
"Agora, nem todos. Se os benefícios fiscais concedidos não atingem certos objetivos — como a busca do pleno emprego, o desenvolvimento sustentável e a redução de desigualdades —, temos aí um problema. É justamente aí que surge a figura dos 'privilégios tributários'.">
Em seu levantamento, a Unafisco considera como "privilégios tributários" os benefícios fiscais que não teriam uma contrapartida social comprovada por estudos técnicos, na visão da entidade sindical.>
Porém, para além dos gastos tributários apontados anualmente pela Receita Federal em seu Demonstrativo dos Gastos Tributários (DGT), que acompanha o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), a Unafisco adota um conceito mais amplo, incluindo na sua conta outras três renúncias que considera relevantes:>
Assim, a Unafisco estima que os gastos tributários chegarão a um total de R$ 903,3 bilhões em 2026.>
Desse montante, a entidade considera que R$ 618,4 bilhões — ou 68% do gasto tributário total — seriam "privilégios tributários", ou seja, renúncias sem contrapartida comprovada para a sociedade.>
Os dez maiores somam R$ 479,6 bilhões, ou 78% dos privilégios totais.>
>
No topo da lista, a isenção de lucros e dividendos deixa de gerar R$ 146,1 bilhões ao cofres públicos, nas contas da entidade, já descontando R$ 32 bilhões que deverão passar a ser arrecadados quando a reforma do Imposto de Renda entrar em vigor, com a taxação dos dividendos em 10%.>
Apesar de a reforma trazer o fim da isenção total, ela ainda taxa os dividendos abaixo de outras rendas, taxadas atualmente a um alíquota nominal entre 15% e 27,5%. Assim, na avaliação da Unafisco, lucros e dividendos seguem tendo benefício fiscal no Brasil e, por isso, entram na conta.>
"Quando a União não inclui no gasto tributário a isenção para lucros e dividendos, isso retira do Legislativo uma oportunidade de debate", argumenta Silva.>
"Eles não são informados o quanto essa isenção traz de prejuízo ao país. Sabemos que temos R$ 1 trilhão de dividendos distribuídos [anualmente no Brasil], e é preciso que isso faça parte desse debate entre Executivo e Legislativo na elaboração do Orçamento.">
O segundo item de maior peso, nas contas da Unafisco, é a não instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), com uma arrecadação potencial estimada em R$ 100,5 bilhões.>
"Se trata de uma omissão do Legislativo", argumenta o presidente da Unafisco, lembrando da decisão recente do STF reconhecendo essa omissão — o Supremo, no entanto, não estabeleceu um prazo para que isso seja resolvido.>
A taxação dos super-ricos foi uma das principais bandeiras do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em seu terceiro mandato. Com esse objetivo, o governo propôs a reforma do Imposto de Renda (IR), aprovada em outubro pelo Congresso e sancionada por Lula em novembro.>
A lei aprovada prevê a isenção de IR para quem ganha até R$ 5 mil e descontos para aqueles com renda de até R$ 7.350 mensais. Para compensar a perda de arrecadação, serão taxados em até 10% os contribuintes com renda acima de R$ 600 mil por ano, com a taxação de lucros e dividendos na fonte a 10%, para montantes acima de R$ 50 mil por mês pagos por uma mesma pessoa jurídica. >
A reforma aprovada incide sobre a renda dos mais ricos, diferentemente do IGF, um imposto sobre o patrimônio, cuja eficiência é questionada por alguns economistas.>
Lorreine Messias, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper, concorda que a isenção de lucros e dividendos e a não instituição do IGF podem ser consideradas como gastos tributários, como faz a Unafisco.>
"Se eu entender que o conceito de gasto tributário é tudo aquilo que eu abro mão, que eu deixo de arrecadar, sim, me parece fazer sentido", diz a pesquisadora.>
No entanto, ela avalia que não é porque o IGF está previsto na Constituição que ele seja necessariamente um bom imposto e que deva ser criado.>
A pesquisadora fez uma revisão bibliográfica sobre países que adotaram o IGF. Ela constatou que a grande maioria dos países que adotaram essa forma de taxação sobre o patrimônio descontinuaram o tributo no início dos anos 1990.>
Atualmente, apenas três países na Europa ainda taxam grandes fortunas: Noruega, Suíça e Espanha (mais especificamente a região da Catalunha). Na América Latina, a Colômbia é um exemplo de país que adota esse tipo de tributação.>
Analisando essas experiências, a partir dos estudos publicados, a pesquisadora do Insper constatou que a arrecadação com esse tipo de imposto é baixa. Um dos motivos para isso, diz ela, é a alta elasticidade desse tipo imposto.>
"Quando aumento um ponto percentual de alíquota desse tributo, eu perco muito em termos de arrecadação. Então, ele é um tributo muito sensível", diz Messias.>
"Para cada ponto percentual que eu aumento, o contribuinte vai reagir, de maneiras lícitas e ilícitas. Ele vai esconder patrimônio, vai mandar [recursos] para fora [do país]. Licitamente, ele vai redirecionar esses recursos para ativos que não são tributados. Isso tudo foi visto [na literatura acadêmica].">
Além disso, diz a pesquisadora, a experiência mostra que a manutenção do imposto demanda um esforço muito grande por parte da administração tributária. >
E que não há evidências de que, nos países que adotaram o IGF, o tributo tenha reduzido a desigualdade.>
"Nossa Constituição foi elaborada há 37 anos. A literatura naquele período não tinha nem os recursos metodológicos, nem experiências suficientes para avaliar isso [os efeitos do IGF]", diz Messias.>
"Então, era uma hipótese teórica que a adoção de tributos patrimoniais melhoraria a redistribuição de renda. Felizmente, a literatura econômica avançou. E o debate público precisa avançar. Não podemos continuar amarrados a uma mera previsão constitucional.">
Mauro Silva, da Unafisco, reconhece que a adoção do IGF é polêmica e que há evidências contrárias à adoção do imposto.>
Ele defende, porém, que adotá-lo seria uma questão de justiça tributária, mesmo que o tributo arrecade pouco. E diz que esse é um debate que precisa ser feito.>
"O IGF está lá na Constituição, tem uma previsão constitucional. Então, esse debate precisa ser feito", defende o representante dos auditores fiscais.>
Completam a lista da Unafisco de maiores "privilégios tributários" os efeitos indiretos dos programas de parcelamentos especiais de débitos tributários, como o Refis e o Pert.>
Através desses programas, contribuintes com dívidas tributárias podiam regularizar suas obrigações sob condições especiais, como prazos longos, redução ou cancelamento de juros, anistia de crimes e até quitação dos débitos.>
O governo realizou mais de 40 desses programas desde sua criação em 2000, com uma renúncia fiscal estimada pela Unafisco em R$ 176 bilhões somente até 2018 (60% da dívida original).>
O problema é que a repetição desses programas fez com que os contribuintes passassem a contar com eles em seu planejamento tributário, deixando de pagar os impostos em dia, para pagar com atraso, com descontos vantajosos.>
Embora desde 2020 o governo tenha mudado o critério para adesão a esses programas, passando a considerar o histórico fiscal do contribuinte, a Unafisco considera que os efeitos negativos continuam, com empresas ainda adiando o pagamento de impostos na expectativa da renegociação.>
Assim, a entidade calcula um impacto de R$ 43,9 bilhões dos programas de parcelamentos especiais em valores não arrecadados em 2026.>
Ainda na lista, a Unafisco inclui a parcela do Simples Nacional que beneficia empresas com faturamento acima de R$ 1,8 milhão, por avaliar que essas empresas não contribuem significativamente para a geração de empregos no país, como contribuem as empresas menores — que geram 75% dos empregos entre as empresas do Simples.>
Esse benefício tributário deve consumir R$ 35,7 bilhões em 2026, estima a associação.>
Atualmente, o Simples — um regime tributário simplificado idealizado para beneficiar micro e pequenas empresas — pode ser adotado por negócios com receita bruta de até R$ 4,8 milhões, um valor considerado muito alto por críticos ao modelo e que, segundo eles, desestimularia as empresas a saírem do regime especial.>
Criada há quase 60 anos (em 1967), a Zona Franca de Manaus — parque industrial localizado na capital amazônica, beneficiado com incentivos fiscais e tarifas alfandegárias especiais — também está na lista e deve representar uma perda de arrecadação de R$ 35 bilhões para o governo em 2026.>
"Políticas públicas devem ser transitórias por definição, sejam elas bem ou mal sucedidas, uma hora elas deveriam ser descontinuadas", diz Lorreine Messias, do Insper. >
"A Zona Franca é um exemplo de política que está aí há 60 anos e não se faz uma avaliação séria dos benefícios.">
A Unafisco ainda considera como um "privilégio fiscal" toda a parcela da desoneração da cesta básica que beneficia pessoas com capacidade contributiva, que a entidade considera que são todas aquelas que não são beneficiárias do Bolsa Família. O impacto disso no Orçamento é estimado em R$ 30,1 bilhões em 2026.>
Do gasto tributário total de R$ 903,3 bilhões estimado para o próximo ano, a entidade considera que R$ 284,8 bilhões seriam gastos com "notória contrapartida social ou econômica".>
No entanto, dentro desta conta estão, por exemplo, as deduções de gastos com saúde e educação no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). >
A Unafisco argumenta que esses gastos não seriam "privilégios", "em virtude de sua relevância notória para a sociedade" e diante da falta de investimento público suficiente nessas áreas.>
No entanto, essas são renúncias fiscais que notoriamente beneficiam a parcela mais rica da população, que é aquela que declara Imposto de Renda.>
"Essa é uma das políticas que fazem com que a nossa tributação da renda seja mais regressiva, porque quem mais gasta com educação e saúde privadas são as famílias mais ricas", observa Lorraine Messias, do Insper.>
"Então, isso é, sem dúvida, algo mal desenhado dentro do Imposto de Renda e que precisa ser revisto, e não é porque existem grupos que resistem, com capacidade de influência no nosso Parlamento.">
Mauro Silva, da Unafisco, reconhece a crítica, mas novamente defende o debate.>
"Se a política de saúde do país não atende como deveria a população, eu não posso dizer que essa dedução é privilégio. Agora, existe alguma parte disso que pode ser considerada privilégio? Esse é um debate que precisa ser feito.">
O sindicalista, porém, concorda com a pesquisadora do Insper que os grupos de interesse com poder de pressão sobre o Congresso são hoje a maior barreira para rediscutir o gasto tributário.>
Ele lembra que, em 2021, uma emenda constitucional foi aprovada instituindo regras transitórias para a redução dos benefícios tributários, determinado um limite de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) para esses benefícios.>
No entanto, alguns dos subsídios que mais oneram o Orçamento foram excluídos da conta para essa redução, entre eles, a dedução da cesta básica, os benefícios para entidades sem fins lucrativos, a Zona Franca de Manaus, o Simples e o Microempreendedor Individual (MEI).>
"Há uma captura do Orçamento por alguns setores", diz Silva. >
"No momento da discussão do Orçamento e na elaboração das leis, eles exercem grande pressão e protegem esses setores de qualquer redução [de benefícios]. Então é muito difícil [mudar isso], pela representatividade que esses grupos de interesse conseguem ter dentro do Congresso Nacional.">
Gráfico por Laís Alegretti e Caroline Souza, da equipe de jornalismo visual da BBC News Brasil>
>
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta