Publicado em 23 de maio de 2025 às 07:38
Ministro da Propaganda do regime nazista que vigorou na Alemanha e visto como um dos mais fanáticos ideólogos da política extremista de Adolf Hitler (1889-1945), Paul Joseph Goebbels indicou em seu diário, no dia 23 de novembro de 1939, uma curiosa fonte de inspiração:>
"Fui para a cama cedo. Passei um longo tempo lendo as profecias de Nostradamus, muito interessantes para nós hoje.">
Michel de Nostredame (1503-1566), o Nostradamus, foi um astrólogo, médico e futurólogo francês que se tornou conhecido por uma coletânea de 942 pequenos textos enigmáticos que supostamente previam eventos futuros.>
No seu diário, Goebbels acrescentou que havia falado com Hitler "sobre as profecias". "Considerando os tempos em que vivemos, elas são surpreendentes. O Führer está muito interessado", pontuou.>
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Segundo estudos do historiador americano Eric Kurlander, professor na Universidade Stetson, na Flórida, e autor do livro Os Monstros de Hitler - Uma história sobrenatural do Terceiro Reich, cuja tradução brasileira foi lançada há pouco pelo selo Zahar, este viés esotérico não é um fato isolado nas bases do nazismo que devastou a Europa e impactou a história do mundo no século 20.>
Longe das leituras convencionais que abordam o nazismo apenas sob as lentes da geopolítica, economia ou ideologia racista, Kurlander mergulha no submundo esotérico que permeou o pensamento e as práticas do regime de Hitler, revelando como o imaginário sobrenatural foi central para a construção simbólica e prática do nazismo.>
"Eu mostro que Hitler leu um livro chamado Magia: História, Teoria e Prática, de um parapsicólogo que claramente lhe enviou o livro do nada", comenta o historiador, em entrevista à BBC News Brasil. A obra foi escrita por um excêntrico pensador alemão chamado Ernest Schertel (1884-1958).>
De acordo com Kurlander, o livro integrava a biblioteca pessoal de Hitler e havia no seu exemplar 66 marcações, provavelmente feitas pelo próprio comandante nazista. >
Entre as frases sublinhadas estavam "Satã é o guerreiro fertilizador, destruidor e construtor" e "Aquele que não carrega sementes demoníacas dentro de si nunca dará à luz um novo mundo".>
"Por que um parapsicólogo que estava envolvido em práticas cabalísticas nuas e em danças tântricas estranhas na Índia havia decidido que Hitler, dentre todos os políticos, seria a pessoa para quem ele deveria enviar o livro?", provoca Kurlander. >
"Há algo na forma como Hitler falava e agia que estava conectado à magia.">
Cuidadoso, o historiador lembra que "não está claro se Hitler acreditava em magia, mas ele estudava como as pessoas que pensavam como Schertel poderiam ser manipuladas". E, sobre isso, há outras evidências.>
"Em Mein Kampf ['Minha Luta', livro escrito pelo próprio Hitler], ele diz que não podemos mais ser um movimento de errantes vestidos com peles de urso. Por que um político moderno diria isso?', questiona.>
"Porque o movimento folclórico que Hitler conhecia bem, surgido nos anos 1890, tinha um bando de pessoas indo para a floresta vestidas com roupas de animais, falando sobre Odin e seus lobos, sobre medicina homeopática, sobre ervas, natureza, sangue e solo. Ele sabia que daí vinha muito do seu apoio.">
Um dos principais nomes do partido nazista, Heinrich Himmler (1900-1945) era entusiasta da medicina alternativa, fã do ocultismo e, como frisa Kurlander, vivia obcecado por curas naturais e por métodos como a homeopatia. >
No livro, Kurlander conta que Himmler era um dos apoiadores de uma "doutrina extravagante" chamada de "cosmogonia glacial". >
Segundo a postulação, "a história, a ciência e religião poderiam ser explicadas por luas de gelo que atingiram a Terra em tempos pré-históricos".>
A partir de uma longa pesquisa de cerca de dez anos a partir de "farta documentação", o historiador diz que "nenhum movimento político de massas, à exceção do nazismo, recorreu de forma tão consciente e consistente ao que chamo de 'imaginário sobrenatural'". >
Neste escopo ele inclui o ocultismo, a ciência fronteiriça, o paganismo, as religiões new age e orientais, o folclore, a mitologia e várias outras doutrinas sobrenaturais.>
De acordo com Kurlander, esse conjunto de crenças e ideologias foi fundamental "para atrair uma geração de alemães e alemãs que buscavam novas formas de espiritualidade e explicações inovadoras para o mundo, situadas entre a verificabilidade científica e as verdades propagadas pela religião tradicional".>
O historiador conta que foi observando a presença de pseudociências e teorias conspiratórias no meio extremista de direita contemporâneo que ele resolveu mirar na história e buscar essas raízes na ascensão do nazifascismo. >
"As pessoas não têm levado a sério o papel do pensamento conspiratório, dos argumentos sobrenaturais e baseados na fé no surgimento do nazismo", comenta.>
A pesquisa de Kurlander é meticulosa, baseada em arquivos alemães e fontes primárias que sustentam uma narrativa ousada: a de que o nazismo foi o único movimento de massas do século 20 a institucionalizar práticas e crenças sobrenaturais em larga escala.>
Se recentemente o mundo assiste a uma renitente onda de conspiracionistas e negacionistas, dos que duvidam do benefício de vacinas aos que veem uma trama persecutória nas instituições públicas, passando pelos terraplanistas, a virada do século 20 teve, sobretudo na Europa, a coexistência de doutrinas de diversas vertentes hoje vistas como pseudocientíficas.>
A chamada moderna teosofia — conjunto de doutrinas místicas e ocultistas que buscavam o conhecimento dos mistérios do universo — havia sido sistematizada pela russa Helena Blavatsky (1831-1891). >
De origem austro-húngara, o filósofo esotérico Rudolf Steiner (1861-1925) lançava as bases da chamada antroposofia, da pedagogia Waldorf, da agricultura biodinâmica e da medicina antroposófica. >
Uma outra vertente era a dos ariosofistas, corrente que se destacava no revival ocultista alemão que valorizava o misticismo germânico.>
Neste caldo — em geral teóricos da conspiração aderem a um conjunto dessas doutrinas, e não apenas a uma delas —, proliferou a crença de que uma raça superior de humanos teria surgido no Vale do Indo, na Ásia, e migrado para o norte da Europa dando origem ao povo que ali vivia.>
Em agosto de 1918, um grupo de pensadores fundou em Munique a chamada Sociedade Thule, um união secreta de estudos místicos que pretendia promover antigas tradições ancestrais europeias. Com ênfase no ocultismo, seus integrantes enxergavam os alemães como dotados de superioridade racial.>
A Thule está na raiz do que mais tarde viria a se tornar o Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores, o partido nazista que deu sustentação ao regime de Adolf Hitler. >
De acordo com Kurlander, não é à toa, portanto, que o símbolo do nazismo tenha sido um ícone do universo ocultista, a suástica, e não um emblema de apelo nacionalista.>
Quando os nazistas estavam no poder, houve investimentos no misticismo. >
Por um lado, algumas manifestações ocultistas eram reprimidas ou censuradas — horóscopos não aprovados pelo partido não eram aceitos. Por outro, ideias pseudocientíficas contaram com o aparato do Estado. >
Por exemplo as expedições enviadas por Himmler para o Tibete, considerado o refúgio místico original dos arianos.>
Em 1935, Himmler criou um instituto de pesquisa estatal chamado de Comunidade para a Pesquisa e o Ensino sobre a Herança Ancestral, e era este organismo que concentrava os aparatos instrumental e intelectual para as investigações pseudocientíficas que visavam a provar uma suposta superioridade ariana. >
De acordo com Kurlander, a entidade tinha uma divisão especial, com 14 funcionários, dedicado ao estudo das bruxas.>
O saber pseudocientífico era tão valorizado pelos nazistas que o regime chegou a criar, como aponta o historiador, o Instituto do Pêndulo, dedicado a realizar pesquisas de radiestesia em tempos de Guerra Mundial. >
Radiestesia é uma técnica de adivinhação de base esotérica que consiste em usar bastões para encontrar objetos ou substâncias.>
Em um movimento que pode ser considerado a sistematização da irracionalidade, Kurlander aponta que a pseudociência estava por trás de toda uma série de experimentos nefastos feitos por alemães durante o regime nazista, utilizando prisioneiros judeus muitas vezes como cobaias.>
Foi o ápice da pseudociência aplicada ao horror: os experimentos humanos, a eugenia e o genocídio eram justificados por doutrinas esotéricas de purificação e carma racial. >
A "ciência monstruosa" do nazismo, ao mesmo tempo moderna e arcaica, servia para racionalizar o extermínio em nome de uma suposta regeneração espiritual e biológica.>
Ao longo da Segunda Guerra, astrologia, clarividência, radiestesia e telepatia foram empregadas para decisões militares e espionagem. >
O regime financiou experimentos e pesquisas esotéricas em plena guerra, tentando prever movimentos aliados ou encontrar submarinos inimigos com pêndulos.>
O historiador recorda que desde os anos 1930 há "um debate sobre se o fascismo estava ligado ao irracional, ao conspiratório ao místico". >
"Era a hora de voltar aos arquivos e ver o que era de fato verdade e o que não era", diz. "Tanto por interesse intrínseco de minha área quanto pela relevância atual", acrescenta.>
Ele concluiu que a onda esotérica se desenvolveu como uma reação ao Iluminismo e à Revolução Industrial. >
"Houve uma reação, romântica, de pessoas, muitas vezes muito inteligentes, que se sentiam frustradas com a ênfase ao materialismo, à ciência, ao secularismo e às soluções institucionais para os problemas políticos", afirma.>
"Havia um número considerável de pessoas, a partir da primeira metade do século 19, negando os avanços tecnológicos e científicos, dizendo 'eu não gosto disso, isso não combina com a minha intuição, isso não me faz me sentir importante', contextualiza.>
Para essas pessoas, os avanços tecnocientíficos botavam em xeque a valorização de suas raízes, a religiosidade e as experiências pessoais. Como se o secularismo que se desenhava então negasse as "entidades místicas que dariam força, vigor, sentimento e emoção", diz o historiador.>
O revival místico europeu foi, portanto, uma reação forte ao cientificismo que grassava.>
Por volta de 1890, configura-se o que ele chama de "um movimento cultural de pessoas procurando alguma alternativa ao materialismo". >
"Elas começam a recorrer, como argumento, ao que eu chamo de imaginário sobrenatural. Se você tem uma visão romântica do mundo, você não gosta do materialismo e da ciência, então você precisa de uma forma de dar sentido ao mundo", afirma.>
Kurlander aponta que essas pessoas acabam constituindo os "pilares do imaginário sobrenatural". Em outras palavras, apoiam-se em doutrinas ocultistas ou esotéricas e isso dá espaço para teorias como a antroposofia, a teosofia, a ariosofia e uma série de manifestações centradas na mitologia. >
"Uma visão de um passado perdido que era maior e mais puro, com gigantes de gelo, castelos e um mundo não corrompido pela industrialização", diz.>
É quando também se consolida aquilo que o autor classifica como "ciências de fronteira". >
"Gente dizendo 'somos cientistas mas conseguimos encontrar respostas com raios secretos sob a terra, poderes mágicos, telepatia, clarividência', coisas que os cientistas materialistas tradicionais não conseguem encontrar", comenta.>
"Tudo isso surge com muita força antes da Primeira Guerra Mundial, como uma resposta ao desencantamento do mundo. A religião tradicional desaparece e as pessoas precisam de algo para preencher esse vazio", analisa. >
"Recorrem à astrologia, à parapsicologia, à teoria da cosmogonia glacial, ao folclore, à medicina homeopática… Isso estava como uma reação romântica à modernidade.">
Kurlander então situa que a Alemanha entre as duas guerras mundiais se tornou terreno fértil para a proliferação dessas teorias por conta da profunda crise e da sensação local de que havia contra os alemães uma certa injustiça por parte do restante do mundo. "Isso que os fascistas exploraram. Esse tipo de pensamento", diz.>
A fusão entre misticismo, racismo e ação política deu origem a uma nova linguagem simbólica que atrairia milhares de alemães em crise após a Primeira Guerra Mundial.>
O modus operandi consistia em usar argumentações pretensamente científicas para justificar um imaginário que, partindo de uma visão alternativa da realidade, pretendia fazer desmoronar o Estado liberal supostamente neutro. >
"Eles [os líderes nazistas] queriam substituir esse Estado por um Estado leal ao partido e ao Führer, governado em nome da raça, do povo", explica.>
A ideia então passou a ser "se livrar dos especialistas", substituindo-os por "pessoas leais ideologicamente a eles", disfarçando tudo com uma linguagem científica e constitucional, "fingindo que era legítimo".>
Para Kurlander, esse mesmo mecanismo pode ser percebido atualmente em episódios marcantes da extrema-direita. >
Ele recorda especificamente do dia 6 de janeiro de 2021, quando descontentes com o resultado da eleição que havia então derrotado Donald Trump e eleito Joe Biden para o governo dos Estados Unidos, invadiram o Capitólio. >
"Vimos isso. Havia o xamã QAnon [como é conhecido o conspiracionista americano Jacob Anthony Angeli] vestindo peles de animais e um chapéu viking. As mesmas tradições estão se reproduzindo", compara.>
"Homens brancos irritados no Ocidente estão abraçando a mitologia indo-ariana, ideias folclóricas, movimentos antivacina, medicina homeopática e retorno à floresta, de formas que às vezes lembram hippies, bruxas, e outras vezes são de movimentos violentos e racistas. Talvez misture ambos", diz>
O historiador ressalta que o "fascismo triangula". "Pega elementos do liberalismo, do conservadorismo e do socialismo e mistura tudo numa ideologia contraditória e insustentável", afirma. O perigo reside neste endereço, da mesma forma que Hitler fez chocar o ovo daquelas teorias de superioridade racial que estavam latentes.>
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