Publicado em 19 de setembro de 2025 às 08:32
Quando o banco Itaú anunciou a demissão de mais de 1 mil funcionários que trabalhavam em regime remoto ou híbrido, na semana passada, uma das maiores surpresas para demitidos foi descobrir a quantidade de informações sobre o que faziam no computador que era de conhecimento da empresa.>
O próprio banco explicou, conforme mostrou a BBC News Brasil, que mediu a atividade dos colaboradores ao longo de quatro meses. Foram considerados o uso de mouse e teclado, chamadas de vídeo, envio de mensagens, realização de cursos, pacote office, dentre outras métricas.>
Embora esse monitoramento do trabalho remoto não seja uma novidade e venha sendo aplicado ao menos desde o boom do home office causado pela pandemia do coronavírus, o caso chamou a atenção pelo nível de detalhamento desse tipo de vigilância. >
O banco nega que tenha feito captura de telas, áudio ou vídeo, já que isto poderia violar a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). >
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Ainda assim, uma série de ferramentas de vigilância de atividades foi aplicada por meses.>
Mas, afinal, o que exatamente esse tipo de programa pode fazer?>
A BBC News Brasil testou e analisou dois deles na última semana, XOne e Teramind, assistiu a conteúdos publicados por usuários das plataformas, anúncios das empresas e identificou ações judiciais que citam a vigilância feita por essas ferramentas.>
Os testes da BBC demonstram que esse tipo de programa permite ver em tempo real o que cada funcionário está fazendo, quais sites estão sendo acessados e até identificar, de forma automatizada, se o funcionário realizou alguma ação em desacordo com as políticas da empresa (por exemplo, entrar em um site proibido ou mandar e-mail com dados sensíveis).>
No caso XOne, nosso teste não pode ser concluído. >
A empresa que o administra removeu o acesso à plataforma de demonstração do software durante a apuração desta reportagem, após a repercussão das demissões no banco. Ainda assim, foi possível acessar informações em vídeos divulgados pela própria empresa e publicações em suas redes sociais. >
O jornal Folha de S.Paulo e outros veículos de imprensa afirmaram que o XOne era o software utilizado pelo Itaú, informação que as empresas (o banco e a responsável pelo software) não confirmam nem negam.>
Felipe Oliveira, cofundador da empresa que administra o XOne, disse por e-mail que o acesso para testes foi removido por causa do volume de solicitações, mas que todos os pedidos já efetuados por esse canal serão atendidos. >
A BBC News Brasil não conseguiu retomar os testes, mesmo tendo reiterado os pedidos. O Itaú também se recusou, por e-mail, a demonstrar como funciona a plataforma na empresa.>
Não é possível afirmar, no momento, quais dessas capacidades identificadas pela BBC foram ou não utilizadas pelo banco Itaú.>
O banco afirmou, em nota, que o monitoramento se restringe ao uso corporativo de softwares licenciados pela empresa.>
O Ministério Público do Trabalho (MPT) instaurou um procedimento investigatório na última terça-feira (16/09) em que pede esclarecimentos à empresa sobre o episódio das demissões.>
Fundada em 2014, a Teramind diz em seu site que é líder em "soluções comportamentais" e que atende mais de 10 mil organizações em mais de 125 países.>
O suporte da empresa disse que eles possuem "muitos" clientes no Brasil, embora não haja um número específico.>
O programa de monitoramento da empresa está disponível para testes e oferece uma demonstração com dados fictícios no próprio site, sem instalar nada. >
Nele é possível ver e testar uma função chamada "live activity overview", que mostra telas de funcionários em tempo real.>
A BBC entrou em contato com o suporte da empresa para questionar sobre possíveis problemas de privacidade e dados pessoais.>
A Teramind disse que isso deve ser checado com advogados em cada país e que não dá aconselhamento legal aos clientes.>
A lista de ferramentas da empresa é extensa. Esses são alguns exemplos:>
- Monitoramento do histórico de sites e aplicativos visitados pelo funcionário; >
- Visão e controle remoto do computador do funcionário;>
- Atividades em mídias sociais;>
- Identificação automatizada de possível comportamento malicioso ou não autorizado, com registro da ação em vídeo; >
- Interações com o computador / produtividade (para este item há um indicador de horas trabalhadas e taxa de atividade).>
A tela de demonstração da plataforma também mostra uma série de rankings, que dizem quais são os sites mais acessados, os usuários com maior atividade e possíveis práticas não autorizadas. Uma delas mostra usuários que navegam em aba anônima, por exemplo. >
Há até um alerta para quem entra em sites de "busca de emprego" nesta demonstração, bem como "enviar e-mail com informações sensíveis.">
Em 2022, ao menos duas ações na Justiça do Trabalho brasileira citaram a Teramind em processos contra uma mesma companhia de venda de veículos em São Paulo. A empresa dona do software não foi acusada de nada nem é parte do processo, mas foi mencionada como plataforma de monitoramento.>
Nos contratos, a companhia de carros justifica o uso do software contratado como forma de proteger dados internos — imagens de tela, conversas, dados de clientes.>
Em um dos processos, um ex-representante comercial pediu o reconhecimento de vínculo trabalhista, alegando que sua rotina era de empregado, já que até sua jornada era controlada via Teramind, que registrava horários online/offline e tempo ocioso.>
Em outro, o trabalhador afirmou que seu notebook era monitorado e que não podia recusar clientes, pois o programa verificava se o atendimento ocorria de fato e até espionava ligações. A empresa não comentou esses casos específicos.>
No caso da XOne, a empresa diz, em um vídeo no Youtube, que é possível "acompanhar em tempo real as atividades da equipe".>
A reportagem criou uma conta na plataforma na semana passada, mas os testes foram suspensos pela empresa depois do caso das demissões no Itaú.>
Foi possível identificar funções no menu do programa que permitem saber quais sites estão sendo acessados, quando e por quanto tempo, o tempo de inatividade do funcionário e a geolocalização dos computadores monitorados.>
As telas do programa mostram que é possível identificar quais são os programas que estão sendo usados, por quanto tempo e quem mais os utiliza.>
Há ainda opções para verificar aderência à jornada de trabalho (vale lembrar, esse foi um dos motivos usados pelo Itaú para as demissões; o banco alegou que essas pessoas não estariam trabalhando durante todo o período devido).>
A plataforma também permite visualizar rankings de colaboradores com menor aderência, por porcentagem.>
O programa foi criado pela Arctica, empresa fundada em 2019 e que se apresenta com o propósito de “ajudar organizações a compreenderem melhor seus ambientes digitais e a extrair valor estratégico das informações disponíveis.”>
A Arctica diz que não divulga sua lista de clientes, mas que atende a “serviços financeiros, telecomunicações, seguradoras, tecnologia e indústria.” >
Diz ainda que recomenda boas práticas de transparência sobre o uso de seu software e que a responsabilidade de avisar os funcionários é do empregador. >
Ressaltou também que “não realiza gravação de tela, nem captura o conteúdo de comunicações pessoais (mensagens privadas, e-mails pessoais, postagens em redes sociais, áudios ou vídeos privados).” >
Depois de a BBC News Brasil ter publicado depoimento de um funcionário demitido do Itaú, recebemos uma série de relatos sobre o clima na empresa.>
Um dos demitidos relatou que colegas que continuaram no banco estão se sentindo pressionados e com medo de serem mandados embora. >
"Então levam o computador até para beber água durante o home office", contou, em relação ao receio de serem considerados inativos pelo software usado pelo banco. >
Nenhum deles quis ser entrevistado, mesmo sem se identificar, por medo de retaliação.>
Essa pressão relacionada ao monitoramento do trabalho remoto é conhecida e já foi documentada em diversos estudos.>
Uma dissertação de mestrado de Fabrício Barili, da Universidade Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), sobre essas plataformas, de 2022, aponta que elas podem potencializar a disputa entre trabalhadores para continuarem empregados.>
O trabalho cita especificamente a Teramind e diz que a plataforma não tem a produtividade como foco, mas sim o comportamento "que pode comprometer a segurança de informação da empresa". A XOne não é citada no estudo.>
Uma das críticas feitas por ex-funcionários do Itaú foi a falta de clareza sobre como eram monitorados. O banco afirma, no entanto, que tudo estava previsto em contrato e em políticas internas.>
Pedro Henrique Santos, pesquisador da Data Privacy Brasil, explica que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) não proíbe o monitoramento. Mas que tudo deve ser consentido e comunicado de forma clara e acessível.>
"O monitoramento faz parte da relação trabalhista e o empregador tem esse direito. O uso da tecnologia não é necessariamente ruim. Mas é preciso comunicar da forma mais transparente possível, disponibilizando canais de informação e explicando já no momento da contratação.">
Ele ressalta que as empresas devem avaliar até que ponto essas ferramentas são, de fato, indispensáveis para a gestão.>
"Quando se pensa em tomar decisões a partir desses dados, é preciso avaliar se os resultados realmente são úteis. E verificar se há outra forma de chegar à mesma conclusão, com menos coleta de dados e menos monitoramento.">
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