Publicado em 24 de maio de 2025 às 11:39
A empresa americana Colossal Biosciences anunciou em 7 de abril a suposta volta à vida do lobo-terrível (Aenocyon dirus), alegando tratar-se da primeira espécie a voltar da extinção da história. >
Imediatamente, diversos cientistas questionaram a versão da empresa, gerando uma polêmica científica que foi tema de reportagem da BBC News Brasil. >
Agora, a cientista-chefe da Colossal Biosciences, Beth Shapiro, admitiu, em entrevista à revista de ciência New Scientist, que os animais apresentados pela empresa como "lobos-terríveis" são, na verdade, lobos-cinzentos (Canis lupus) com cerca de 20 modificações genéticas. >
Ou seja, não houve de fato uma "desextinção" da espécie, que desapareceu há cerca de 10 mil anos.>
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"Não é possível trazer de volta algo idêntico a uma espécie que já existiu. Nossos animais são lobos cinzentos com 20 alterações genéticas clonadas", disse Shapiro à New Scientist.>
"E dissemos isso desde o início. Coloquialmente, eles foram chamados de lobos-terríveis e isso deixa as pessoas furiosas", completou a pesquisadora.>
Richard Grenyer, biologista e conservacionista da Universidade de Oxford, afirmou à New Scientist que o novo posicionamento da Colossal é muito diferente do que a empresa havia dito antes.>
"Acho que há uma séria inconsistência entre o conteúdo da declaração [de Shapiro] e as ações e o material publicitário — incluindo o conteúdo padrão do site, não apenas o briefing de imprensa sobre o lobo gigante — da empresa", diz Grenyer.>
Antes de aparecer na capa da revista Time, acompanhado de uma manchete anunciando que a espécie teria voltado da extinção, o lobo-terrível ganhou fama ao aparecer na série de ficção Game of Thrones.>
Em abril, um vídeo postado pela empresa americana Colossal Biosciences no X mostrava os uivos de filhotes que supostamente seriam de lobo-terrível.>
A companhia disse à época que os animais foram criados a partir de ferramentas de edição genética.>
"Esse momento representa não apenas um marco para nós como empresa, mas um avanço para a ciência, a conservação e a humanidade", comemorou a Colossal Biosciences nas redes sociais, em abril.>
Mas cientistas logo apontaram diferenças biológicas importantes entre o lobo da capa da Time e o lobo-terrível que vagava e caçava durante a última era glacial.>
Entre eles, estava o zoólogo Philip Seddon, da Universidade de Otago, na Nova Zelândia, que alertou já em abril que estes animais seriam, na verdade, "lobos-cinzentos [Canis lupus], geneticamente modificados", o que agora foi confirmado pela cientista-chefe da Colossal Biosciences>
Em uma série de vídeos publicados pela Colossal Biosciences nas redes sociais, cientistas que fizeram parte do projeto explicavam em detalhes o passo-a-passo da iniciativa.>
De acordo com seu relato, o primeiro passo foi coletar amostras de DNA do lobo-terrível. >
Para isso, eles extraíram o material genético — que guarda as informações sobre as características de um ser vivo e as instruções para o organismo funcionar — de duas fontes: um dente de 13 mil anos encontrado em Ohio, nos Estados Unidos, e um pedaço de crânio de 72 mil anos escavado em Idaho, também nos Estados Unidos. >
Em seguida, o lobo-terrível teve seus genes sequenciados. Os pesquisadores puderam então analisar essas informações genéticas e buscar qual espécie viva ainda preserva algum grau de parentesco com o animal extinto.>
Eles chegaram, então, ao lobo-cinzento que vive em grande parte do Hemisfério Norte, em especial em regiões mais frias, como o Canadá e a Rússia. >
Neste processo, eles entenderam quais genes eram iguais ou diferentes entre as duas espécies de lobo — e quais desses trechos de DNA eram responsáveis por determinar características específicas, como tamanho, peso, cor da pelagem, formato das orelhas etc.>
A Colossal desenvolveu então técnicas menos invasivas para coletar células progenitoras endoteliais (a camada que reveste o interior dos vasos sanguíneos) do lobo-cinzento.>
Essas células foram usadas como a base para o trabalho de modificar os genes. >
Por meio de técnicas avançadas como o Crispr, os cientistas fizeram 20 edições em 14 genes, para que eles ficassem de acordo com o que foi encontrado no DNA do lobo-terrível (e não mais do lobo-cinzento). >
Com isso, seria possível obter algumas das características do lobo-terrível: pelo branco, maior porte, ombros abertos, cabeça mais larga, mais músculos nas pernas e vocalizações típicas da espécie, marcadas por uivos e choramingos. >
Mas o trabalho não terminou aí: com a edição dos genes finalizada, os especialistas transferiram o núcleo dessa célula (local onde fica guardado todo o DNA) para um óvulo — cujo próprio núcleo havia sido retirado previamente.>
Esse óvulo, por sua vez, foi cultivado para se tornar um embrião — que foi implantado no útero de uma cadela doméstica. >
A cadela teve uma gestação normal e, ao final do período, nasceram os supostos filhotes de lobo-terrível. >
Os dois primeiros vieram ao mundo em 1° de outubro de 2024 e foram batizados de Rômulo e Remo — uma alusão ao mito dos irmãos gêmeos amamentados por uma loba que fundaram Roma.>
O terceiro, uma fêmea, nasceu em janeiro deste ano e ganhou o nome de Khaleesi, uma homenagem a Daenerys Targaryen, personagem de Game of Thrones. >
Rômulo, Remo e Khaleesi são mantidos em uma grande reserva privada nos Estados Unidos cuja localização não foi divulgada, para proteger os animais. >
Não há previsão de que eles sejam soltos na natureza ou cruzem para produzir uma nova geração.>
O anúncio da empresa causou imediatamente um amplo debate se o que ela fez de fato foi uma "desextinção".>
O paleogeneticista Nic Rawlence, também da Universidade de Otago, argumentava já em abril que o DNA antigo do lobo pré-histórico extraído de restos fossilizados seria muito degradado e danificado para ser copiado ou clonado biologicamente.>
"DNA antigo é como se você colocasse DNA fresco em um forno a 500 graus", disse Rawlence à época.>
"Ele sai fragmentado, como cacos e poeira. Você pode reconstruí-lo, mas não é bom o suficiente para fazer qualquer outra coisa com ele.">
Em vez disso, acrescentou Rawlence, a equipe da Colossal empregou uma nova tecnologia de biologia sintética, usando o DNA antigo para identificar segmentos-chave de código que eles poderiam editar no DNA de um animal vivo hoje, um lobo cinzento no caso.>
"Então, o que a Colossal produziu é um lobo-cinzento, mas ele tem algumas características semelhantes às do lobo pré-histórico, como um crânio maior e pelo branco", disse Rawlence, logo após o anúncio da empresa. "É um híbrido.">
Beth Shapiro, da Colossal Biosciences, disse em abril que a empresa teria feito de fato uma desextinção, ao descrever isso como a recriação de animais com as mesmas características.>
Em entrevista à revista New Scientist à época do anúncio bombástico, Shapiro detalhou que as duas espécies usadas no projeto — o lobo-terrível e o lobo-cinzento — dividiriam 99,5% do DNA.>
"Um lobo-cinzento é o parente vivo mais próximo de um lobo-terrível — eles são geneticamente muito semelhantes", disse a cientista.>
Embora esse percentual pareça elevado, o 0,05% restante representa uma parcela significativa em termos genéticos: o lobo-cinzento possui 2,4 bilhões de pares de bases nitrogenadas (as "peças" que compõem cada um dos genes). >
Ou seja: o 0,05% de DNA que separa lobo-cinzento e lobo-terrível ainda representa uma diferença de mais de um milhão de pares de bases nitrogenadas entre as espécies.>
De acordo com Rawlence, os lobos terríveis se separaram evolutivamente dos lobos cinzentos em algum momento há 2,5 milhões a 6 milhões.>
"Eles estão em um gênero completamente diferente dos lobos cinzentos", disse Rawlence. >
"A Colossal comparou os genomas do lobo terrível e do lobo cinzento, e de cerca de 19 mil genes, eles determinaram que 20 mudanças em 14 genes deram a eles um lobo-terrível.">
Mas certamente o animal extinto possui muitas outras diferenças no DNA que não foram contempladas na "nova versão" da espécie feita pelos cientistas da Colossal — e modificaram somente algumas características do lobo-cinzento (que deram a Rômulo, Remo e Khaleesi o pelo branco e o porte maior).>
Para a NewScientist, Shapiro defendeu em abril que "conceitos de espécie são sistemas de classificação humana". >
"Estamos usando o conceito de espécie morfológica [determinadas por características e semelhanças] e dizendo que, se eles se parecem com este animal [o lobo-terrível extinto], então eles são esse animal", disse a cientista. >
Na verdade, não está claro se os lobos geneticamente editados se parecem com lobos pré-históricos. >
Por exemplo, há algumas evidências de que os lobos pré-históricos tinham pelagens avermelhadas em vez de brancas, de acordo com Claudio Sillero, da Universidade de Oxford.>
Os filhotes da Colossal certamente se parecem com a visão que muitas pessoas têm de um lobo terrível, e a história atraiu atenção global.>
Então por que a distinção científica de que isso foi ou não uma extinção é importante?>
"Porque a extinção ainda é para sempre. Se não tivermos extinção, como aprenderemos com nossos erros?", questionou Rawlence.>
"A mensagem agora é que podemos destruir o meio ambiente e que os animais podem ser extintos, mas podemos trazê-los de volta?">
A Colossal argumentava, em seu anúncio em abril, que residiria justamente aí o potencial deste tipo de iniciativa.>
De acordo com a empresa, essa poderia ser uma ferramenta para lidar com a extinção em massa de espécies que acontece neste exato momento — e que está relacionado às mudanças climáticas e à ação humana.>
O Centro para Diversidade Biológica calcula que 30% da diversidade genética do planeta será perdida até 2050 por causa desse sumiço generalizado de diferentes formas de vida. Para a empresa americana, a edição genética seria uma maneira de reverter isso.>
Grenyer, de Oxford, afirmou a revista New Scientist que há muito se sabe que, se as pessoas começarem a acreditar que a desextinção é possível, isso pode reduzir o apoio aos esforços de conservação. >
Segundo o cientista, embora a Colossal esteja fazendo avanços científicos significativos, afirmar que se trataria de "desextinção" de espécies é simplesmente errado.>
"É transformador e é uma ciência inovadora — mas não é desextinção", disse ele.>
*Com reportagem de André Biernath, da BBC News Brasil, e Victoria Gill, da BBC News.>
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