Publicado em 18 de novembro de 2025 às 14:44
O cantor e compositor Jards Macalé, morto ontem, aos 82 anos, vítima de uma parada cardíaca, sofrida após um procedimento cirúrgico — ele estava internado no Rio de Janeiro, onde morava, para tratar um enfisema pulmonar —, não se destacou apenas como compositor. >
Autor de canções icônicas como "Vapor Barato" e "Mal Secreto", ambas em parceria com o poeta Waly Salomão, Macalé também se destacou como produtor e arranjador, sendo responsável pela concepção musical do disco Transa, considerado por muitos o melhor e mais importante disco de Caetano Veloso.>
"Sem Macalé não haveria Transa", escreveu Caetano em suas redes sociais, minutos após a confirmação da morte do compositor carioca. >
O antológico disco, gravado em Londres, uniu e separou os dois músicos e amigos. >
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Eles ficaram mais de 50 anos sem se falar, trocando farpas pela imprensa, numa rinha iniciada por Macalé, que não se conformava com o fato de seu nome não aparecer na ficha técnica de Transa.>
Os dois se reconciliaram nos shows comemorativos dos 50 anos de Transa. >
Caetano convidou Macalé para subir no palco nas duas apresentações no Espaço Unimed, em São Paulo. O músico carioca foi ovacionado pelo público em vários momentos, como no solo de guitarra em "Nine Out of Ten".>
Por que Caetano não deu crédito a Macalé em Transa? Além do disco não existir sem o produtor, como reconheceu o baiano, eles eram grandes amigos — foi Macao, como era chamado na intimidade, quem ensinou Caetano a tocar violão. >
"Havia muita intimidade com ele (...) Eu tinha muita timidez como músico, e com ele não ficava intimidado", disse Caetano, em entrevista ao jornal O Globo, em 2012.>
Macalé e Caetano conheceram-se no verão de 1963, em Salvador. O compositor tijucano, de férias na Bahia, assustou-se com a timidez quase crônica do jovem artista baiano, que, apesar de ser um ano mais velho, se comportava como um calouro no primeiro dia de aula.>
"A gente tocava um pouco de violão na sala e depois íamos para o quarto dele. Ele [Caetano] plantava bananeira, ficava de ponta cabeça na cama e dizia: 'Vire também, Macao, vai começar a sessão'', lembrou Macalé, em depoimento ao livro Outras Palavras - Seis Vezes Caetano, de Tom Cardoso.>
A luz que entrava pela janela projetava na parede do quarto tudo o que se passava no lado de fora – mas por conta de um fenômeno óptico, essa imagem era projetada de forma invertida, de modo que, para ver o que estava rolando, era preciso ficar de ponta cabeça, relatou o músico>
"A gente ficava assim um tempão, vendo as imagens. Caetano mudo, no mais completo silêncio. Nos conhecemos assim", contou Macalé. >
Dois anos depois desse inusitado começo de amizade, Macalé hospedou Maria Bethânia em seu apartamento, em Ipanema. >
A cantora havia acabado de chegar ao Rio para substituir Nara Leão no espetáculo Opinião. A amizade com os irmãos Veloso estreitou-se, mas o laço foi interrompido com a prisão de Caetano e o exílio em Londres.>
Em 1970, Macalé voltava de uma noite de Carnaval quando recebeu uma ligação de Caetano. O baiano começaria a gravação de um novo disco e precisava imediatamente da presença do amigo no Chappelle 's Recording Studios. >
Ele estava cheio de ideias na cabeça, mas só Macao seria capaz de organizá-las, de dar uma unidade ao disco.>
A banda que tocaria em "Transa" formou-se no estúdio, no calor da hora. Uma seleção da música brasileira: Macalé no violão, Tutty Moreno na bateria, Moacyr Albuquerque no baixo e Áureo de Souza na percussão.>
Responsável pela produção e arranjos, Macalé aproveitou o clima na cidade — a capital inglesa vivia ainda o rescaldo da Swinging London, como ficou conhecido o período de grande efervescência cultural e comportamental — para tomar todas as drogas possíveis. Logo ele, chamado para organizar o pensamento musical do careta Caetano.>
"Caetano nunca fumou, nem cheirou, nem tomou ácido. Ele tem medo de ficar maluco, como se ele já não fosse louco. Mas ele pegava carona, ficava tão louco quanto a gente", lembrou Macalé, em entrevista ao UOL, em 2017.>
Além de maconha, LSD e outros aditivos, os músicos consumiram litros e mais litros de leite. >
"A gente ensaiava tomando leite para evitar contaminação. Tinha uma intensidade. Gravamos tudo praticamente ao vivo para pegar o calor da hora. É uma saudade da sua terra, da língua, do seu jeito de ser, do seu povo", contou Macalé, na entrevista ao UOL.>
Nesse clima de doideira, gravou-se um grande álbum, um dos maiores da discografia brasileira. Caetano, deprimido desde a chegada a Londres, se sentiu revigorado — e grato a Macalé.>
"Era um trabalho orgânico, espontâneo, e meu primeiro disco de grupo, gravado quase como um show ao vivo. Foi Transa que me deu coragem de fazer os trabalhos com A Outra Banda da Terra", disse Caetano, em entrevista ao Jornal do Brasil, em 1991.>
"Tem 'Nine out of Ten', a minha melhor música em inglês. É histórica. É a primeira vez que uma música brasileira toca alguns compassos de reggae, uma vinheta no começo e no fim. Muito antes de John Lennon, de Mick Jagger e até de Paul McCartney", afirmou o baiano.>
Caetano e Macalé certamente gravariam muitos outros LPs juntos se o nome do músico carioca constasse na ficha técnica do disco. Não foi o que aconteceu. >
O seu nome não aparecia em lugar nenhum, assim como o de Angela Ro Ro, também presente no estúdio. >
Mas ao contrário da então jovem cantora, cuja participação se resumia a um solo de gaita na faixa "Nostalgia", Macalé, além de tocar violão em todas as faixas, era o arranjador, o produtor e o grande organizador musical do disco.>
Caetano, primeiro, colocou a culpa no produtor e artista gráfico Alvinho Guimarães, seu grande amigo, responsável pela capa de Transa. >
"Como é que bota essa bobagem de dobra e desdobra, parece que vai fazer um abajur com a capa, e não bota a ficha técnica? Era importantíssimo", disse, em 1991, em entrevista ao Jornal do Brasil.>
Em 2006, durante entrevista coletiva na sede da gravadora Universal Music, responsável pela reedição do disco, Caetano argumentou que, na época da gravação de Transa , os nomes dos músicos não apareciam nas capas dos discos brasileiros. O baiano não deixava de ter razão.>
"A ficha técnica do [disco] Gal-Fatal, de 1971, por exemplo, é bem confusa em relação aos músicos que tocam. Quem é o guitarrista de quais faixas? Lanny Gordin ou Pepeu Gomes?", questiona o crítico musical Tárik de Souza, em depoimento à BBC News Brasil>
"O caso mais escandaloso que me ocorre, já depois dessa época, é o do disco do João Gilberto gravada nos EUA, The best of two worlds, de 1976, em que ele está na capa com o Stan Getz e a Miúcha e o nome dela não aparece", afirma.>
O fato é que Macalé, magoado profundamente com o descaso do amigo, rompeu a amizade. E não se calou. Reclamou diversas vezes pela imprensa. >
O leonino Caetano, bom de briga, não deixou barato. A briga escalou, com trocas de acusações de ambos os lados. >
Bethânia, Gil e Jorge Mautner, também muito próximos de Macalé, tomaram as dores de Caetano e se afastaram do convívio do autor de "Vapor Barato".>
Macalé e Caetano fizeram as pazes no aniversário de uma amiga em comum, a atriz Marieta Severo. Na mesma noite, o baiano convidou Macao para cantar nos shows comemorativos de Transa.>
A idade não permitiu que ambos vissem um filme de ponta cabeça no sofá, mas os fraternos laços estavam retomados. >
"Estou chorando porque ele morreu hoje. Foi meu primeiro amigo carioca da música", escreveu Caetano, em seu Instagram.>
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