Publicado em 8 de dezembro de 2025 às 14:44
Quando a Casa Branca divulgou, na sexta-feira, a nova Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos (National Security Strategy), um detalhe chamou a atenção de diplomatas e especialistas em relações internacionais: o documento cita nominalmente a Doutrina Monroe, formulada há mais de dois séculos, e diz que Washington deve "retomar" seus princípios no relacionamento com a América Latina.>
A referência reacende uma das ideias mais antigas — e controversas — da política externa americana.>
Criada em 1823, a Doutrina Monroe afirmava que qualquer intervenção de potências europeias no hemisfério ocidental seria vista pelos EUA como uma ameaça direta à sua segurança. >
Ao mesmo tempo, estabelecia a região como uma esfera prioritária de interesse estratégico dos Estados Unidos.>
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Dias antes da divulgação da estratégia, o presidente Donald Trump publicou uma mensagem oficial marcando o aniversário da Doutrina Monroe. >
No texto, ele descreveu o princípio criado no século 19 como "fundamental" para a história dos EUA e disse que sua administração está comprometida com a proteção do hemisfério ocidental.>
A coincidência entre a mensagem presidencial e a publicação da estratégia nacional reforçou a leitura de que Washington deseja recolocar a América Latina no centro de sua política externa.>
Segundo o documento divulgado na sexta, o governo Trump considera que ameaças externas na América Latina — especialmente a influência econômica e tecnológica da China e a presença de redes criminosas transnacionais — exigem uma postura mais ativa de Washington.>
O texto menciona que os EUA "devem recuperar a clareza estratégica" da Doutrina Monroe para garantir estabilidade regional e impedir que "adversários" fortaleçam presença militar ou econômica em países do hemisfério.>
A nova estratégia também descreve a América Latina como um "front central" na disputa geopolítica contemporânea, justificando o reposicionamento de recursos militares, diplomáticos e de inteligência. >
O documento afirma que alianças hemisféricas devem ser reforçadas e que Washington "não aceitará interferências hostis" na região.>
A Doutrina Monroe surgiu em um contexto de disputa imperial. Em 1823, os Estados Unidos buscavam evitar que potências europeias - especialmente Espanha, França e Grã-Bretanha - retomassem influência sobre territórios recém-independentes na América Latina. >
O presidente James Monroe apresentou então uma política baseada em dois pilares: a oposição a qualquer tentativa europeia de recolonização ou intervenção no continente, que seria interpretada como ameaça à segurança dos EUA, e o compromisso de que Washington não se envolveria em conflitos internos da Europa, preservando seu próprio espaço geopolítico.>
Com o passar das décadas, no entanto, a doutrina deixou de ser apenas uma declaração de princípios defensivos. Especialmente a partir do fim do século 19, ela passou a ser reinterpretada por diferentes governos dos Estados Unidos como justificativa para intervenções diretas ou indiretas no Caribe e na América Central. >
O chamado Corolário Roosevelt, de 1904, ampliou a ideia original ao afirmar que os EUA poderiam intervir em países da região para "estabilizar" governos considerados incapazes de cumprir obrigações internacionais.>
Esse histórico faz com que a doutrina seja vista, por muitos países latino-americanos, como um símbolo do intervencionismo americano no hemisfério.>
Duzentos anos após sua formulação, a referência no texto de segurança nacional não significa, necessariamente, a adoção de uma política idêntica à da virada do século 19 para o 20 — mas indica que Washington pretende reforçar a lógica hemisférica como base para decisões estratégicas.>
Para governos latino-americanos, especialistas e diplomatas, o desafio agora será interpretar até que ponto essa menção representa uma mudança concreta de postura dos EUA — e o que isso pode significar para o equilíbrio político e militar na região nos próximos anos.>
Em reportagem publicada pela Reuters em 5 de dezembro, correspondentes internacionais e analistas consultados pelo veículo afirmam que a citação explícita à Doutrina Monroe — em vez de referências indiretas — marca uma mudança de tom na política externa norte-americana. >
Ainda segundo a Reuters, o documento descreve a visão do governo Trump como uma forma de "realismo flexível" e argumenta que os EUA devem "reviver" a doutrina do século 19, que considerava o hemisfério ocidental como uma zona de influência de Washington.>
A referência explícita à Doutrina Monroe também provocou reações na Europa. Segundo a mesma reportagem da Reuters, o documento critica aliados europeus por apresentarem "coordenação estratégica insuficiente" e alerta que o continente enfrenta o risco de "civilizational erasure" ('apagamento civilizacional'), expressão usada no texto oficial.>
Diplomatas europeus consultados pela agência expressaram preocupação de que essa formulação possa sinalizar um afastamento da cooperação transatlântica em temas de segurança.>
Dentro dos Estados Unidos, a Reuters relata que a retomada da doutrina divide acadêmicos e antigos formuladores de política externa. >
Alguns entrevistados pela agência consideram a referência histórica sobretudo simbólica, enquanto outros alertam que associar a política atual à Doutrina Monroe pode reforçar percepções negativas sobre o papel dos EUA na América Latina, especialmente à luz de intervenções ocorridas ao longo do século 20.>
A divulgação da nova Estratégia de Segurança Nacional ocorre em um momento em que diversos países latino-americanos enfrentam instabilidade política, pressões econômicas e desafios de segurança que afetam diretamente a relação da região com os Estados Unidos.>
O documento divulgado pelo governo Trump menciona explicitamente preocupações com tráfico transnacional de drogas e armas, fluxos migratórios em direção ao território americano, operações de inteligência de potências rivais e vulnerabilidades em infraestruturas críticas — especialmente em redes energéticas e digitais. >
Para Washington, enfrentar esses problemas exige maior cooperação militar e de segurança com governos locais, algo que, na interpretação apresentada pela Casa Branca, se encaixa na lógica de "proteção hemisférica" vinculada historicamente à Doutrina Monroe.>
A nova estratégia também ganha relevância porque coincide com uma escalada de tensões entre os Estados Unidos e a Venezuela. >
Nas últimas semanas, o governo Trump intensificou a pressão sobre o presidente Nicolás Maduro, ampliando o valor da recompensa oferecida por informações que levem à sua captura e reforçando a posição de que a eleição presidencial venezuelana de 2024 foi ilegítima. >
A crise política interna venezuelana — marcada pela disputa entre Maduro e a oposição, pelo controle de instituições e por denúncias de fraude eleitoral — segue como um dos principais focos de atrito entre Washington e Caracas.>
Paralelamente, os EUA mobilizaram um contingente militar sem precedentes recentes na região. Cerca de 15 mil militares, além de porta-aviões, destróieres e navios de assalto anfíbio, foram enviados ao Caribe para compor uma operação classificada por Washington como destinada a combater o tráfico internacional de drogas. >
Desde setembro, forças norte-americanas realizaram mais de 20 ataques contra embarcações em águas internacionais que, segundo o governo dos EUA, transportavam drogas em direção ao país. Mais de 80 pessoas morreram nessas ações. >
Autoridades americanas descrevem os alvos como integrantes de organizações criminosas transnacionais envolvidos em "guerra irregular" contra os Estados Unidos — uma caracterização que tem gerado debate jurídico sobre a legalidade das operações.>
O tema migratório também atravessa a relação bilateral. O governo Trump vincula o aumento da migração venezuelana à permanência de Maduro no poder e afirma que a crise econômica, a repressão política e o colapso de serviços essenciais no país contribuem para o deslocamento de milhões de pessoas pelo continente. >
Quase oito milhões de venezuelanos deixaram o país na última década, muitos deles tentando chegar aos EUA após percorrer rotas terrestres pela América Central.>
Enquanto isso, autoridades dos EUA afirmam que grupos criminosos venezuelanos, como o Tren de Aragua e o chamado Cartel de los Soles, estariam envolvidos no tráfico internacional e teriam ligações com altos funcionários do governo Maduro, alegação negada por Caracas. >
Especialistas independentes observam que o Cartel de los Soles não funciona como uma organização centralizada, mas como um termo usado para descrever redes de corrupção que facilitam o trânsito de drogas pelo país. >
Ao mesmo tempo, a Venezuela não aparece entre os principais produtores de cocaína ou fentanil; no caso deste último, dados oficiais norte-americanos apontam o México como principal origem da substância que entra nos EUA.>
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