Publicado em 30 de agosto de 2019 às 12:16
O presidente da França, Emmanuel Macron, resvala na hipocrisia ao atacar a política ambiental do governo Jair Bolsonaro, já que o país europeu não cumpre vários compromissos listados no Acordo de Paris sobre a mudança climática.>
O cientista político Olivier Dabène, professor da Sciences Po (Instituto de Estudos Políticos de Paris), diz que o embate dos últimos dias entre Paris e Brasília ofereceu um "bálsamo fantástico" ao líder francês.>
"Bolsonaro lhe foi muito útil. É um alvo fácil, tem um quê de palhaço imprevisível, é alguém que vai retrucar uma provocação com virulência, com uma provocação maior ainda", afirma o pesquisador, que também presidente o Observatório Político da América Latina e do Caribe.>
Outra prova dessa hipocrisia de Macron, diz o professor, é o fato que Paris segue distribuindo licenças para mineradoras atuarem na faixa da Amazônia situada na Guiana Francesa.>
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Nesse sentido, prossegue Dabène, centrar fogo no presidente brasileiro permite a Macron desviar a atenção da opinião pública da França, "onde as coisas não vão exatamente bem no país".>
Para o professor, "um mínimo de respeito à soberania brasileira deveria impedir que se debatesse a internacionalização da floresta", ainda mais considerando que Brasília não estava na lista de participantes da cúpula do G7 (clube de países ricos), em que a ideia foi aventada.>
"Isso é ridículo, denota desprezo por um Estado que não seria capaz de proteger sua floresta.">
Esta é a pior crise diplomática da história das relações entre Brasil e França?>
Sim, pelo menos nas últimas décadas. Historicamente, as relações bilaterais são boas, posso até dizer ótimas. Então [a animosidade] choca um pouco. Não são dois países que tenham o hábito de se confrontar assim. Houve um estremecimento quando os franceses tentaram libertar [a então senadora e candidata à Presidência da Colômbia] Íngrid Betancourt [refém das Farc de 2002 a 2008]. Ocorreu uma violação do espaço aéreo brasileiro que suscitou uma crise curta.>
Mas não devemos exagerar o alcance do embate atual. Não me parece tão grave assim. Vivemos uma época em que, inspirados por Donald Trump, os políticos deixaram de lado os discursos meramente retóricos e se divertem tentando ser "sinceros", quando não insultando.>
Trata-se então de um conflito desenhado para as câmeras e para as plateias internas de cada presidente?>
Sim, ainda que haja diferenças entre as posturas dos dois. Bolsonaro é o arquétipo do dirigente que fez uma campanha populista, em cima de declarações improvisadas que viraram uma arma eleitoral bem-sucedida. Agora, leva essa franqueza populista à política externa de seu país.>
Já Macron precisava de um G7 que tivesse repercussão, ainda que ninguém esperasse muita coisa dessa cúpula. A expectativa era apenas a de que os outros líderes tentassem não irritar muito Trump. Mas ele [o francês] tinha em mente uma diplomacia retumbante, feita de lances vistosos e jogadas audaciosas.>
Desse ponto de vista, os incêndios na Amazônia representaram um bálsamo fantástico para Macron, e ele soube se aproveitar disso. Bolsonaro lhe foi muito útil. É um alvo fácil, tem um quê de palhaço imprevisível, é alguém que vai retrucar uma provocação com virulência, com uma provocação maior ainda...>
Resta a ver o efeito disso sobre a opinião pública na França, em um momento no qual as coisas não vão exatamente bem no país.>
Então Bolsonaro tem alguma razão ao dizer que Macron instrumentalizou um problema interno do Brasil, quis tirar proveito dele?>
Sim, isso me parece claro. Os dois jogaram o mesmo jogo: fizeram política interna com diplomacia. É claro que o conflito não foi inventado do nada, que há um problema de fundo: o respeito a compromissos ambientais, ao Acordo de Paris sobre a mudança climática. Mas os brasileiros têm razão em dizer que os franceses não respeitam seus próprios engajamentos e que apontar o dedo para o Brasil ajuda a desviar o foco disso.>
E como o sr. vê o comentário do presidente brasileiro sobre a "mentalidade colonialista" de Macron ao falar em "crise internacional" na Amazônia?>
Quando Bolsonaro faz isso, rejeita novamente a linguagem moderada dos governantes. Mas não está totalmente errado. A atitude do G7 de dar lições a um país que não foi convidado à mesa de discussão é inapropriada.>
A soberania e o anticolonialismo são ideias sempre associadas à floresta amazônica. Trata-se de um tema sensível, o que os franceses às vezes não percebem. Para o Brasil, falar em bem comum da humanidade [referindo-se à Amazônia] não faz sentido. Entendo o choque de algumas pessoas.>
Um mínimo de respeito à soberania brasileira deveria impedir que se debatesse a internacionalização da floresta. O Brasil não é o Polo Sul; ninguém vai recortar a Amazônia em zonas pequenas controladas por países estrangeiros. Isso é ridículo, denota certo desprezo por um Estado que não seria capaz de proteger sua floresta.>
Para a França, é muito mais fácil criticar o Brasil e ainda mais o Brasil de Bolsonaro do que a China e os Estados Unidos. Ou mesmo a Alemanha, grande poluidora com carvão.>
O fato de a Amazônia não ter sido mencionada no documento final da cúpula do G7 foi tido pelo Itamaraty como uma vitória brasileira. É possível fazer essa leitura?>
Até se pode pensar assim, mas Macron também já teve uma vitória ao atrelar a Amazônia à ratificação ou não do acordo comercial entre União Europeia e Mercosul.>
Macron deveria palpitar sobre gestão florestal no Brasil quando a preservação da parte da Amazônia situada na Guiana Francesa é contestada, sobretudo devido à proliferação do garimpo ilegal?>
Exato. Esse é um dos temas em que a atuação da França é muito criticável, e Macron sabe disso. Então é prático desviar a atenção para a Amazônia brasileira, enquanto ativistas protestam contra as licenças dadas a mineradoras e atividades extrativistas muito poluentes. É hipocrisia.>
Passada a briga de agora, qual será o futuro das relações entre França e Brasil?>
Não estamos longe de uma tempestade em copo d´água [nesse episódio da Amazônia]. Não acho que as relações serão afetadas por muito tempo. Deve haver um apaziguamento rápido.>
No que diz respeito à ratificação do acordo, Macron não tem interesse em manter longamente seu veto, porque isso o isolaria na Europa, e ele tem a ambição de encarnar o futuro do continente, seu renascimento. Não acho que esteja disposto a pagar esse preço. E acho que alguns diplomatas brasileiros sabem disso.>
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