“Tinha que ser mulher, por isso o ônibus tá atrasado”. Essa foi a frase que Marciana de Souza Alves, motorista que faz parte do sistema GvBus na Grande Vitória, teve de escutar de uma passageira enquanto cumpria sua jornada de trabalho diária.
“A gente sofre preconceito, sendo que as pessoas não entendem que o problema pode ser no trânsito. Você dá um duro danado na pista, passando calor, para ouvir isso? Eu respiro e conto até 10, porque bater boca com pessoas que têm esse pensamento é uma perda de tempo”, conta.
Infelizmente, o relato de Marciana não é único. Os estereótipos que envolvem mulher e direção estão enraizados na sociedade e reproduzem uma lógica de desigualdade entre os gêneros, que se perpetua há muito tempo e coloca a mulher numa posição de fragilidade e incapacidade perante os serviços tradicionalmente considerados masculinos.
“A permanência do patriarcado na nossa sociedade é uma constante, que mantém a hierarquização entre homens e mulheres de forma que as mulheres fiquem em segundo plano” afirma a pós-doutora em Sociologia Política e professora da Universidade Federal do Espírito Santo, Maria Beatriz Nader.
Mas o que se vê são mulheres que se movimentam para que a presença feminina nas pistas seja muito maior que a do machismo. E isso se prova com números: de acordo com dados do Detran-ES, o número de mulheres motoristas mais que dobrou em 10 anos, fator influenciado pela inserção da mulher no mercado de trabalho, como conta Nader.
Maria Beatriz Nader
Pós-doutora em Sociologia Política e professora da Universidade Federal do Espírito Santo
"Ao se fazer independente, a mulher opta por uma situação de liberdade, de independência, de ela poder ir aonde ela quiser, e não depender de homem, seja filho, seja marido, seja irmão, seja pai…"
Mais mulheres habilitadas
Atualmente, o Estado conta com 584.407 motoristas habilitadas, número que, se comparado ao de 2015, em que 374.112 mulheres possuíam a Carteira de Habilitação Nacional (CNH), expressa um aumento de 56,2%.
Mesmo com o número de habilitados sendo superior devido ao histórico social e político, a professora acredita que o aumento de mulheres com CNH simboliza a liberdade feminina. “O fato de as mulheres tirarem carteira demonstra uma independência financeira. Antes, podíamos nem andar de carona, quanto mais andar em um carro próprio”, reflete.
E um exemplo disso é a própria Marciana, que, mesmo já possuindo a habilitação na categoria D, que contempla os veículos que transportam mais de oito passageiros, se inspirou a atuar de fato na área ao ver seus futuros colegas de profissão trabalhando.
“Comecei como cobradora e depois fui para a fiscalização, onde lidava diariamente com os motoristas, que sempre falavam para eu ir para o volante, mas eu não me via lá, mesmo amando muito a profissão. Porém, eu resolvi me arriscar mesmo assim e, com a minha curiosidade e incentivo dos amigos, fiz o teste, passei e me encontrei”, relembra a motorista que, neste ano, completa 10 orgulhosos anos de profissão.
Dentro de casa, sua atuação sempre gerou reações distintas. Sua mãe adotiva acreditava que a função não era para mulheres e temia que ela enfrentasse preconceitos, enquanto a irmã considerava algo arriscado, preocupando-se com os horários extensos de trabalho.
No entanto, o orgulho também é uma constante, e vem de seus filhos: o mais velho, mestrando em Filosofia pela Ufes, admira a coragem da mãe, enquanto o caçula, de 11 anos, sempre a viu como inspiração e chegou a sonhar em seguir os mesmos passos.
Marciana de Souza Alves
Motorista de ônibus
"Algumas idosas me falam que quando veem uma mulher no volante se sentem representadas, pois não conseguiram tirar a carteira, mesmo querendo muito. O preconceito existe, claro, mas hoje em dia vejo a mudança de pensamento até mesmo pelos meus filhos, já que eles nunca tiveram essa barreira"
"Isso me dá muito amor no coração porque, ser motorista, para mim, é uma escola em que aprendo todos os dias. Por isso, eu falo: se você quer entrar nessa área, tente mesmo, comece como manobreira, para ter uma noção de como é e depois, se for seu sonho, corra atrás”, afirma.
Inspiração para outras mulheres
Dos ônibus para os carros, outra mulher chama a atenção nas pistas - e nos conteúdos. Ana Luiza Alves, motorista de aplicativo e influenciadora digital, nunca imaginou que sua paixão por dirigir se transformaria em um grande case de sucesso na internet, capaz de inspirar diversas outras.
Antes de entrar no mundo dos aplicativos de transporte, Ana trabalhava como garçonete em um bar e já tinha o hábito de compartilhar histórias curiosas em suas redes sociais. Quando decidiu sair do emprego, viu na profissão de motorista uma oportunidade. “Sempre gostei muito de dirigir, então não teria prejuízo. O máximo que podia acontecer era não me adaptar e não ter lucro”, conta.
118 MIL SEGUIDORES
TEM ANA LUIZA ALVES NO INSTAGRAM
E as previsões negativas, felizmente, não se confirmaram. Com o tempo, ela conseguiu comprar seu próprio carro, já que antes alugava, e seguir na profissão e, sua câmera veicular, inicialmente um item de segurança, se tornou a principal ferramenta de Ana Luiza na produção de conteúdo.
Um de seus vídeos com maior repercussão foi gravado quando ela transportava o influenciador catarinense Juliano Floss, que alcançou 256 mil visualizações no Instagram e 2 milhões no TikTok, plataforma de vídeos.
Mas seu maior sucesso veio com um vídeo polêmico sobre passageiros que tentam jogar a corrida para outro motorista ao alegar que não têm troco: a postagem gerou debates e acumulou impressionantes 18 milhões de visualizações. “Vários advogados comentaram sobre a questão jurídica”, lembra.
3 MILHÕES DE CURTIDAS
NO TIKTOK DE ANA LUIZA ALVES
Com a fama, vários outros comentários e mensagens começaram a chegar. “Recebo muitas mensagens de mulheres que começaram no aplicativo por causa dos meus vídeos, que sentiram coragem e se viram representadas, mas muitas outras também têm receio de começar. Para mim, nunca foi uma questão, mas sei que é um trabalho perigoso, pois nós temos que temer 10 vezes mais. Um motorista homem também pode ter medo, mas nós lidamos com o risco de assalto, assédio, estupro… O peso é muito maior”, explica.
Mas, para quem deseja começar no ramo, ela dá algumas dicas essenciais: trabalhar em áreas conhecidas, ativar a opção de só aceitar passageiras mulheres, algo possível em plataformas como Uber e 99, preferir corridas com pagamento no cartão e optar por horários mais seguros, como o período diurno. “Não existe fórmula mágica. É pegar experiência no dia a dia para perder o medo”, aconselha.
Hoje, além de continuar como motorista, Ana Luiza faz publicidade para marcas e quer investir ainda mais na internet, meio que possibilitou seu primeiro mês de férias, mostrando também seu dia a dia.
Caminhão rosa
E, por falar em influencer, a rotina de Anailê Santos Goulart também faz sucesso nas redes por algo bem inusitado: seu caminhão rosa totalmente personalizado.
Assim como seu caminhão, a história de Anailê também começa de um jeito inesperado, já que, diferente de muitos colegas da profissão, não tinha nenhum parente caminhoneiro. Seu marido, inicialmente motoboy, começou a atuar na área com caçambas e, um dia, ela resolveu acompanhá-lo para ver como era a experiência.
Daí, nunca mais parou e, aos 23 anos, já possuía a categoria E, que a habilita a dirigir caminhões de grande porte junto a outras 2.524 mulheres. “Eu fui só pra ver como que era. No início, eu chorava de medo por ver o tamanho do caminhão, mas aprendi e não larguei mais”, relembra.
Hoje, com 10 anos de experiência na estrada, Anailê atua no Porto de Capuaba, em Vila Velha, como membro da Associação de Carreteiros Autônomos (ACA), e presta ajuda no embarque e na descarga de navios. Inicialmente, era a única mulher entre mais de 150 homens, mas, ao longo do tempo, outras duas mulheres passaram a integrar o grupo.
Anailê Santos Goulart
Caminhoneira e influencer
"Lá no começo, os homens se assustaram, pensando que eu estava indo vigiar meu marido. Mas com o tempo, eles foram me vendo trabalhar, grávida, de manhã, tarde e noite, e acabei ganhando o respeito deles. Meu caminhão era laranja, todo quebrado, de 1973. Quando chovia, molhava todo… Foi difícil, mas perseverei"
Inclusive, a trajetória da caminhoneira também é fortemente marcada pela maternidade. Anailê continuou trabalhando até o final de duas de suas três gestações, parando apenas quando não conseguia mais subir no caminhão.
A família, que classifica como sua maior conquista, é uma de suas principais incentivadoras na carreira de digital influencer, que começou de forma despretensiosa, em 2016. “O primeiro vídeo que postei foi passando as marchas do caminhão, que são mais de 10. Na época não era comum ver mulher dirigindo, e teve mais de 1 milhão de visualizações. Com isso, meu marido me incentivou a continuar postando” conta a caminhoneira.
252 MIL SEGUIDORES
TEM ANAILÊ NO INSTAGRAM
O sucesso dos vídeos possibilitou uma verdadeira mudança de vida já que, com a visibilidade, Anailê conseguiu a atenção necessária para reformar seu caminhão “detonado” por completo, com a cor rosa pelo qual é conhecido. Hoje, a influenciadora coleciona parcerias com grandes marcas, como Scania, Shell, Philips e Mercedes.
Essa última, inclusive, a levou para Frankfurt, na Alemanha, para participar da Feira Automobilística de Caminhão, a maior do mundo do setor. “Lá, filmei caminhões que estão chegando só agora no Brasil e pude ir numa pista de teste com ângulo de 90 graus. Vou levar essa experiência para o resto da vida”, comemora.
Além da carreira como caminhoneira e de compartilhar a rotina nas redes sociais, Anailê também é consultora veicular de caminhões. “Quando eu ganhei meu segundo filho, eu morava numa kitnet, já passei por fases difíceis. A internet me abriu muitas portas e, por isso, quero continuar investindo nela e em meu trabalho de consultora”, finaliza.
Campeã da Copa Truck
Das pistas capixabas para os autódromos mundiais, uma mulher se destaca e mostra que é possível conquistar o mundo através do automobilismo: Bia Figueiredo, campeã da categoria Elite da Copa Truck, que é formada por caminhões; e presidente da Comissão Feminina de Automobilismo da Confederação Brasileira de Automobilismo (CBA).
Entrando em seu 31º ano de carreira, Bia é um verdadeiro fenômeno. Ela foi a primeira brasileira a correr em uma categoria top do automobilismo mundial, a Fórmula Indy, a única a vencer na Fórmula Renault e também a única a conquistar uma pole position na Fórmula 3.
Bia Figueiredo
Pilota
"Bem, eu fico muito orgulhosa da minha carreira por tudo que eu conquistei, pelas barreiras que foram quebradas nesse esporte, que normalmente só tem homens, e agora, pelo legado do trabalho com a Comissão Feminina de Automobilismo da CBA"
"Acredito que essa representação seja algo importante e inspirador para muitas meninas, porque se elas sabem que alguém já chegou lá, então entendem que é possível, sim. Apesar de ser muito, muito difícil, tanto para homens quanto para mulheres”, afirma.
Além disso, a pilota também é mãe de dois meninos, possui um canal no YouTube, é comentarista da Fórmula Indy na TV Cultura e é sócia de uma agência de eventos e marketing digital. “Hoje eu tenho muitas funções na minha vida, mas digo que eu consigo dar conta, porque amo tudo o que faço. Amo ser mãe, amo estar com a minha família, amo trabalhar com questões do automobilismo”, declara.
Para quem quer começar na carreira, no momento, o Espírito Santo não possui grandes competições automobilísticas e nem pistas adequadas para a recepção desses eventos. Entretanto, Bia destaca que a Comissão Feminina está de braços abertos e que garotas capixabas podem - e devem - participar das iniciativas promovidas ao público feminino.
4% DOS PILOTOS HABILITADOS
DA CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE AUTOMOBILISMO SÃO MULHERES
“Temos a FIA Girls on Track Brasil Experiência em Automobilismo, que leva meninas para conhecer os bastidores da Fórmula 1 e da Fórmula E. O FIA Girls on Track Brasil Estágio em Motorsports, que leva profissionais e estudantes para estagiar em corridas de várias categorias. A partir deste ano temos a Imersão para Mulheres no Motorsports, em parceria com a AMattheis Motorsport, com palestras e aulas sobre vários temas durante o ano inteiro, tudo grátis e on-line. Todos esses nossos projetos estão abertos à participação de meninas do Brasil inteiro”, conta.
CRESCEU EM 49%
O INTERESSE POR AUTOMOBILISMO ENTRE O PÚBLICO FEMININO, DE ACORDO COM O IBOPE REPUCOM
Por mais engenheiras no automobilismo
Para o sucesso de sua carreira e iniciativas, Bia não está sozinha. Rachel Loh, engenheira de sua equipe na Stock Car, outra categoria em que a pilota compete (e também é comissária técnica da CBA e membro da equipe técnica do GP de São Paulo de Fórmula 1 desde 2010), é uma das peças fundamentais e representa um número que precisa aumentar: de acordo com a CBA, a presença feminina na parte de mecânica e engenharia dentro do automobilismo é de menos de 1%.
E o começo foi difícil. A falta de material didático e recursos foi um obstáculo para a profissional, que cursou Engenharia Mecânica na Universidade Federal Fluminense e fundou a primeira equipe de Fórmula da instituição de ensino.
“Tive que aprender sozinha com os poucos recursos a que eu tive acesso. Só depois de 10 anos eu comecei a ter acesso a materiais e profissionais bons com mais facilidade. Hoje em dia há diversos cursos on-line ligados ao automobilismo, ministrados por profissionais brasileiros e por empresas internacionais”, relata.
Para as mulheres que querem começar, além dos cursos, Rachel afirma que a prática é essencial e que os caminhos estão abertos. “Dentro das universidades que têm curso de engenharia, você pode formar uma equipe de competição, mesmo que seja penoso", aconselha.
Rachel Loh
Engenheira da Stock Car
"O seu desafio é convencer o corpo docente, a diretoria de engenharia e o reitor de que a universidade precisa de um projeto desse. Então, você consegue começar. Procure uma universidade que tenha, tente se associar, peça para fazer uma experiência, vá para as competições ser voluntária. Há várias formas de você participar e aprender sobre"
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