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Guia dos Jogos Olímpicos de Inverno: Pequim entre politização do evento e consolidação econômica da China

Guia dos Jogos Olímpicos de Inverno: Pequim entre politização do evento e consolidação econômica da China

Palco da Olimpíada de Verão em 2008, cidade-sede 'aproveita' estrutura e abriga Jogos de Inverno 14 anos depois. Governo chinês faz uso político e lida com reações de outros países...

Publicado em 4 de fevereiro de 2022 às 07:00- Atualizado há 2 anos

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O temor pelos altos gastos também fez Estocolmo, capital da Suécia, e Cracóvia (cidade do sul da Polônia) rechaçarem a hipótese de sediar a competição. Já a cidade de Lviv, na Ucrânia, utilizou como justificativa os conflitos entre o governo nacional e os separatistas pró-Rússia.

Posteriormente, a Noruega retirou a candidatura de Oslo. O Partido Conservador e o Partido do Progresso não aceitaram apoiar a competição, devido à falta de apoio popular para um evento que custaria muito aos cofres públicos.

Professor do Departamento de Relações Internacionais da Uerj, Maurício Santoro detalhou os fatores que levaram os europeus a não terem condições financeiras de receber a Olimpíada de Inverno de 2022.

- No período da escolha da cidade-sede, entre 2014 e 2015, boa parte da Europa vivia uma crise muito grave. Foi uma década muito ruim, na qual países como a Grécia, Itália, Espanha e Portugal sofriam com a dívida externa e a União Europeia debatia se eles deveriam ser ajudados ou não. Além disto, o Reino Unido saiu da União Europeia. Em meio a este contexto, houve a ascensão de movimentos populistas, com regimes autoritários. A própria Rússia aproveitou a realização da Olimpíada de Söchi para utilizar de maneira política o evento - destacou ao LANCE!.

Santoro apontou como a capital da China teve condições para manter sua candidatura aos Jogos de Inverno de 2022.

- O governo da China é extremamente autoritário. Os protestos ou manifestações da população são reprimidos com mão de ferro. Além disto, a máquina do governo é usada em prol dos interesses do regime da República Popular da China, que usa um evento da dimensão da Olimpíada como afirmação nacionalista - disse.

Pequim teve como sua única concorrente a cidade de Almaty, no Cazaquistão. A vitória aconteceu de maneira apertada, por 44 votos a 40. Pesou a estrutura que a capital da China tinha como legado da Olimpíada de Verão de 2008.

- O intervalo entre as duas Olimpíadas é muito significativo para uma visão sobre o país. Em 2008, a Olimpíada de Pequim foi um marco da China que alcançou o posto de potência global. Agora, em 2022, os chineses têm uma economia bastante consolidada - e apontou:

- Neste período, o país conseguiu ter forças para rivalizar com o Ocidente em questões como o 5G e a inteligência artificial. Trata-se de uma China poderosa economicamente, mas com uma imagem política que piorou muito, principalmente devido à postura autoritária. Há repressão do governo, que tem duros conflitos políticos internamente e também com outros países - completou.

A postura do atual líder da República Popular da China, Xi Jinping, reflete os impactos ocorridos no país.

- O desenvolvimento tornou o governo mais disposto a fazer reivindicações nacionalistas que contrariam países do Ocidente. Este cenário aumentou a figura do líder forte, centralizador na China, semelhante ao que vemos hoje na Índia e na Rússia - constatou Santoro.

- A disputa territorial entre a China e a Índia pela região do Himalaia ficou mais acentuada nos últimos anos. Em 2020, houve um confronto violento que feriu dezenas de soldados. Uma das pessoas que carregaram a tocha olímpica foi um soldado chinês ferido em uma batalha. A Olimpíada costuma ser um símbolo de paz, de competição... Foi uma medida que causou uma imagem negativa em outros países - afirmou o especialista em Relações Internacionais da Uerj, Maurício Santoro.

Países também não levarão representantes diplomáticos para o evento.

- Estados Unidos, Austrália, Reino Unido e Canadá são alguns que já explicitaram que não levarão autoridades para os Jogos Olímpicos. Somente os seus respectivos atletas competirão. Os países do Ocidente contestam a forma como a China age e suspeitam que eles ferem os direitos humanos - disse Santoro.

Dinamarca e Japão também aderiram ao boicote, assim como a Holanda, que afirmou que a causa é a pandemia de Covid-19.

O professor do Departamento de Relações Internacionais citou a repressão que aconteceu no Noroeste chinês.

- Em Xinjiang, por exemplo, a opressão ficou ainda mais grave aos muçulmanos (do grupo minoritário uigure). Há registros de suspeitas de maus tratos, repressões, tortura... - detalhou.

Os demais acirramentos políticos aconteceram em áreas turbulentas. Uma delas foi em Hong Kong, na Costa Sul chinesa. O professor Maurício Santoro apontou.

- Hong Kong tinha ficado durante mais de um século (155 anos) como colônia britânica. Embora não chegasse a ser uma democracia plena, a região tinha liberdades civis, independência econômica... Em 1997, ano no qual Hong Kong foi devolvido à China, houve a assinatura de um acordo intitulado "Um País, Dois Sistemas". A região continuaria a ter uma relativa autonomia, com direito à democracia na política, além de liberdades econômica, religiosa e de expressão - e destacou:

- Desde que Xi Jinping assumiu o poder, no entanto, a postura centralizadora do líder aumentou os conflitos da China com esta região. Hong Kong era a capital da mídia chinesa, devido à liberdade que proporcionava para os jornalistas. Só que a repressão política aumentou e hoje são impostas restrições à imprensa. Jornalistas foram detidos, outros fugiram para outros países - completou.

Outra situação delicada é em relação a Taiwan. Inclusive, após um rumor de que iria boicotou os Jogos Olímpicos de Inverno, o país (que compete como Taipéi chinês) foi para a competição.

- Trata-se de um conflito que piorou muito. Taiwan tem sua autonomia, com democracia plena, com poderes independentes e é uma região muito rica. Contudo, existem alguns movimentos pró-separatistas da população, e a China já ameaçou tomar medidas mais drásticas para tentar tomar a região - destacou o professor do Departamento de Relações Internacionais da Uerj.

- Xi Jinping foi eleito em 2012, inicialmente para um limite de dois mandatos. A lei estava em vigor desde a morte de Mao Tsé-Tung (que comandou o país entre 1945 e 1976). Entretanto, com a ajuda do Parlamento, houve a alteração na Constituição. Graças a isso, Xi Jinping pode prosseguir no poder - detalhou o professor Maurício Santoro.

Nos últimos anos, os chineses veem medidas retrógradas serem tomadas pelo regime.

- Embora a China tenha continuado a ser uma ditadura neste período, o atual líder chinês é bem mais autoritário. Antes de sua ascensão ao poder, o governo tinha diminuído a interferência no dia a dia dos indivíduos. Houve permissão para que a população pudesse fazer pesquisas na Internet por meio de mecanismos de busca e tivesse acesso a redes sociais do Ocidente. Mas isto mudou. No momento, eles só podem acontecer em sites semelhantes, mas de origem chinesa - explicou o professor do Departamento de Relações Internacionais da Uerj.

Maurício Santoro destacou a maneira como a China tende a aproveitar brechas para ficar atenta a movimentações cibernéticas dos atletas. Os sites de busca e redes sociais ocidentais são bloqueados para evitar circulação de notícias e informações "que desagradem o governo ou que, no ponto de vista deles, possa causar problemas para a sociedade".

- Há uma suspeita de tentativa de controlar a rotina dos atletas, com a instalação de aplicativos em seus respectivos celulares durante a Olimpíada de Inverno. A sofisticação tecnológica hoje permite que o Xi Jinping tenha controle sobre a população de uma forma que nem Mao Tsé-Tung conseguiu! - constatou.

Já em relação à competição, um dos aspectos chama atenção: a neve dos Jogos Olímpicos é artifical.

- Embora Pequim seja frio, é uma cidade semi-árida, raramente há neve. Para conseguir a estrutura da Olimpíada de Inverno, é necessário desviar muita água (a estimativa que a China tinha em 2019 era de 185 milhões de litros para neve em eventos como esqui ou snowboard, mas membros do Comitê Olímpico Local garantem que só será gasto 1% do reservatório)- afirmou Maurício Santoro.

Xi Jinping, que foi prestigiado internamente também por seu combate à pandemia de Covid-19, agora arcará com a preocupação da nova escalada do vírus.

- O grande desafio da Olimpíada de Inverno é em relação à Ômicron e a outras possíveis variantes. A passar o máximo de seguranca sanitária tanto aos atletas quanto a eventuais torcedores que assistam às competições. Além disto, os demais países ainda veem com ressalvas a maneira como a China tentou controlar o surgimento do novo coronavírus, que posteriormente se alastrou até se tornar uma pandemia - opinou o professor de Relações Internacionais da Uerj.

Contudo, o especialista frisou que, em meio a tantas turbulências, os chineses podem ser alvo de protestos na Olimpíada de Inverno de outra forma.

- A China é um país marcado por crises e, em edições de Jogos Olímpicos, há protestos positivos de atletas. Não é necessário sequer uma faixa ou uma bandeira. Gestos como o dos Panteras Negras se tornam marcantes. Não há um controle sobre isso de fato - explicou o professor do Departamento de Relações Internacionais da Uerj, Maurício Santoro.

Haverá muito em jogo.

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