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No país do futebol, treinadores negros sofrem com falta de oportunidades

No país do futebol, treinadores negros sofrem com falta de oportunidades

Mesmo tendo seus maiores craques jogadores negros, o Brasil ainda emprega poucos técnicos negros. No Brasileirão apenas Roger Machado, do Bahia, é negro

Publicado em 26 de abril de 2019 às 17:37

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País do futebol e da miscigenação, o Brasil é reconhecido por ter entre seus maiores craques dos gramados atletas negros. Desde o passado até o presente são inúmeros jogadores que se despontam por aqui e no cenário internacional. Mas, mesmo tendo tantos negros nesse esporte, ainda é irrisório o número de treinadores da mesma cor. Para se ter uma ideia, dos clubes que vão disputar o Brasileirão este ano, até o momento, há apenas um negro no comando: Roger Machado, do Bahia. No Capixabão também não encontramos nenhum no Estadual deste ano.

Cláudio Adão é treinador de futebol. (Richard Pinheiro/Globo Esporte)

Com 862 gols marcados, o ex-atacante Cláudio Adão, que passou por clubes como Flamengo, Corinthians e Santos, teve poucas oportunidades como treinador, apesar de até hoje querer trabalhar neste cargo. Adão, aliás, recentemente chegou a dar uma declaração em entrevista ao Uol apontando que o racismo acabou o prejudicando como treinador.

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O racismo que impede, porque é algo claro e evidente. É só você olhar pela quantidade de treinadores negros que temos no Brasil, na Série A, segunda, terceira divisão

Cláudio Adão, ex-jogador
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Ao Jornal A Gazeta, o ex-atleta, de 63 anos comentou sobre a frustração de não ter conseguido se firmar nessa profissão, apesar de ter comandado brevemente clubes como Volta Redonda, em 2006, e o Mixto, de Cuiabá, em 2013.

"Desde a época do Didi ele já falava para mim: 'Vai ter dificuldade de ser treinador'. O Didi foi um dos maiores jogadores brasileiros e teve dificuldades para trabalhar. Trabalhou no Real Madrid, como treinador, trabalhou no Fenerbahçe, da Turquia, e no Brasil ele veio trabalhar no finalzinho da carreira no Botafogo e no Fluminense. O racismo que impede, porque é algo claro e evidente. É só você olhar pela quantidade de treinadores negros que temos no Brasil, na Séria A, segunda, terceira divisão, enfim, você faz uma limpa e vê dois, três", enumera.

Adão reforça que entre os jogadores mais talentosos do país estão os negros. E não só no futebol como em vários outros esportes os negros têm papel de destaque, o que vai de contramão quando se fala em cargos de chefia, segundo o ex-jogador.

"Se você pegar no atletismo, no basquete americano, no futebol brasileiro, Pelé, Jairzinho, Didi, hoje Neymar, a grande maioria são negros. Lá fora os negros têm mais oportunidades que aqui. Didi foi muito bem fora, e lá parece mais ser fechado, mas é mais aberto que aqui. Nós estamos engatinhando, o Brasil precisa mudar muito. Tomara que mude, talvez eu não pegue essa mudança, mas espero que essa nova geração tenha mais oportunidades."

Para Cláudio Adão, a situação que se arrasta no futebol não é algo exclusivo dos gramados brasileiros. Vai mais além, e está enraizada na nossa cultura.

"O racismo, na verdade, é algo geral na nossa sociedade. Dificilmente você vê um negro médico, professor universitário não é tão comum, é complicado. Eu quero até dar um tempo nisso, em ficar falando disso porque senão fica apenas eu brigando pela causa. Claro que se hoje pintar uma oportunidade como treinador no futebol eu quero sim porque é o que eu gosto de fazer e eu aprendi a fazer", reforça.

Andrade treinou Flamengo, mas não se firmou

Ex-treinador do Flamengo, Andrade, apesar de acionado em alguns momentos no rubro-negro, nunca conseguiu de fato se firmar à frente do time do Rio. Em 2004 e 2005, ele assumiu, respectivamente, após queda de treinadores. Em 2008 assumiu o posto de auxiliar técnico do Fla, comandado por Caio Júnior. Em julho de 2009, após a saída do técnico Cuca, voltou a assumir o Mengão, primeiro de maneira interina e depois como treinador efetivo, quando foi campeão brasileiro.

Andrade, quando comandava o Flamengo. (Divulgação/Vipcomm))

No ano de 2010, após perder o título da Taça Rio para o Botafogo, Andrade também foi contestado na campanha da Libertadores, com altos e baixos, o que culminou com sua demissão.

Apesar de ser negro e ter tido poucas oportunidades no ex-clube, ele prefere não culpar a cor da sua pele pela não permanência no cargo.

"Na minha carreira de treinador, o problema foi mais a questão política que acontece nos clubes. Naquele momento que eu estava no Flamengo eu não tinha um grande empresário por trás de mim, e vejo a não permanência mais por esse lado. Hoje se você tem um bom empresário com você, você não fica desempregado", aponta. 

Sobre a questão do racismo com treinadores negros, Andrade pondera. "Faz parte da nossa cultura de forma geral, em todos setores da vida, não é só no futebol, mesmo outros cargos, médico, bombeiro, tem poucos negros em cargos chefia, cargos altos. Na própria política mesmo. Procuro ver como um todo, não apenas no meio do futebol. Vem da cultura de anos atrás. E isso com o passar dos anos deve ser corrigido, mas vai levar um tempo. Rei do Futebol é negro, mas para cargo de jogador, não de dirigente, presidente."

Wagner Nascimento procura aprendizado para cargo na África


Preparador físico e treinador de clubes capixabas como o Espírito Santo, Tupy, Vitória e Estrela, Wagner Nascimento atualmente reside na África. Há quatro meses ele atua como auxiliar técnico e preparador do Rayon Sports FC, time de maior torcida da Ruanda.

Wagner teve algumas propostas no futebol capixaba para este ano, mas viu nesse trabalho no exterior uma oportunidade maior de adquirir conhecimento e crescer na profissão.

"Surgiu esse convite do Robertinho, que eu já trabalhei no Fluminense e Espírito Santo. Não atuo diretamente como treinador, mas sou auxiliar e ajudo na preparação física também. Eu não estou atuando no cargo de treinador, mas estou ganhando conhecimento, abrindo novas portas. Para mim é uma grande experiência trabalhar no futebol africano. O estilo de trabalho  é diferente. É o maior clube de Ruanda, de massa, de torcida, com investimento", conta Wagner.

Sobre se Wagner teve dificuldades de treinar times no futebol capixaba por conta do racismo, ele garantiu que por aqui foi bem aceito, apesar de saber que o problema existe.

"No tempo que trabalhei no Espírito Santo, Vitória, Tupy, Estrela posso dizer que nesses momentos não passei nenhuma situação que pudesse caracterizar racismo. Na final do Capixabão, no jogo entre Espírito Santo contra Desportiva, um repórter veio me falar que torcedores tinham falado algo racista sobre mim, mas eu não prolonguei o assunto. Não temos muito treinadores negros na Série A. Hoje fator fundamental para profissional é sua capacitação. Ele tem que estar preparado para lidar com essa circunstância. O profissional precisa estar se aprofundando, com cursos, palestras, encontros e tem que estar envolvido com isso. Eu nunca passei por isso diretamente falando, mas o profissional, em primeiro lugar. tem que se qualificar. E é isso que estou fazendo", acrescenta o treinador. 

Análise 

João Victor dos Santos - Coletivo Negrada  

João Victor dos Santos, Coletivo Negrada. (Arquivo Pessoal)

"O futebol, falando de jogadores, é um espaço em que tem uma maioria de corpos negros no Brasil, de excelência qualidade, mas em compensação os técnicos e a diretoria não correspondem a essa realidade. Muitos técnicos foram jogadores. O futebol em si ele é um jogo de contato físico, é um esporte físico, um jogo braçal, digamos assim. Já o trabalho dos técnicos não, é um trabalho intelectual. E se a gente amplia a questão a gente vê a universidade, onde a maioria das pessoas não são negras, e já em serviços braçais, como os serviços de limpeza, a maioria são negros. Mas isso não quer dizer que as pessoas negras não têm capacidade de estar nesses lugares. Há filtros, que são filtros raciais, como a barreira da universidade, em que as pessoas não conseguem acessar, há uma série de desestímulo, isso tudo são fatores que nos fazem entender o porquê de haver uma minoria nesses locais. Esses técnicos negros, como foi o Andrade no Flamengo, eles conseguem perceber que é diferente a forma de tratamento com eles em relação a outros técnicos. E quando o negro expõe o racismo sofrido, há uma reação muito grande da sociedade e com isso fecham-se portas. E por isso os técnicos negros também acabam se calando, por receio mesmo de perder o emprego, em fechar portas, já que eles precisam trabalhar. É algo doloroso, tem uma reação muito forte, tem um debate espinhoso para eles. No Brasil a gente vê a dificuldade desses técnicos se ascenderem. 

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