Publicado em 3 de outubro de 2019 às 21:14
Victor faz em cinco segundos o que servidores do Supremo Tribunal Federal (STF) levariam trinta minutos para concluir. Não que Victor seja uma pessoa muito mais produtiva. É que ele não é uma pessoa.>
A iniciativa de inteligência artificial do Supremo, lançada no ano passado, é uma das ferramentas tecnológicas que agilizam procedimentos, trâmites e vão além no mundo do Direito. Embora boa parte dos processos ainda consista em pilhas de papel, o futuro já chegou. E não apenas aos tribunais, mas também aos escritórios de advocacia.>
Empresas, chamadas de lawtechs, oferecem diversos serviços. "Foi mapeado por uma dessas empresas que se o advogado usar a palavra 'descaso', a tendência é a indenização (determinada pelo juiz num processo) ser maior, só por conta de uma palavra na petição", conta o advogado capixaba Luiz Cláudio Allemand, que já integrou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).>
Menos trabalho para funcionários ou maiores indenizações para clientes de específicos escritórios podem não parecer grandes avanços. Mas não se trata apenas disso.>
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Servidores e advogados, liberados de serviços repetitivos, que podem ser executados por robôs e outros sistemas, podem prestar um melhor atendimento. E mais rapidamente. Isso num país em que a lentidão do Judiciário, abarrotado de processos e burocracia, é a regra.>
Os robôs aqui tratados não são como os do desenho animado "Os Jetsons", são programas de computador. E tampouco integram cenário de ficção científica.>
O CNJ até já criou um laboratório de inteligência artificial (IA) para cuidar do tema e incentivar a adoção dessas tecnologias pelos tribunais.>
Na prática, a IA pode levantar estatísticas, aprender sozinha determinados procedimentos e sugerir soluções. No que se refere à produção e à sistematização de dados, além de realizar funções com mais agilidade, certamente o faz com mais precisão que humanos.>
AMEAÇA>
E pode soar como ameaça ou ao menos como alerta a quem se limita a tais funções. "Tem um escritório em São Paulo que tinha 3,8 mil advogados, isso tem uns quatro anos. Ele hoje faz a mesma coisa com 800, usando tecnologia. Podemos fazer acompanhamento de processo e pesquisa mais elaborada em período muito mais curto. O ser humano não vai ser reconhecido pelo conhecimento que adquiriu pelo tempo e sim pela pergunta correta que vai fazer", resume Allemand, ele próprio, advogado tributarista, um entusiasta dos novos meios.>
"Eu uso sistema de predição, de busca, de avaliação de causas, de êxito, mas de forma incipiente", pontua.>
Predição é o anúncio antecipado do que está para acontecer. É uma palavra comum quando o assunto é inteligência artificial aplicada ao Direito.>
A ideia, para os advogados, é prever qual deve ser o posicionamento dos magistrados em determinados casos, o que permite calcular a chance de sucesso ou calibrar a estratégia. E isso se faz analisando as decisões já tomadas, que são publicadas em diários eletrônicos. São muitas, seria tarefa inglória para quem é de carne e osso.>
Mas isso virou problema na França. Lá, foi criada uma lei para colocar na cadeia quem tornar públicas análises feitas a partir de decisões de juízes. Já nos Estados Unidos, por exemplo, a prática é permitida.>
Na Letônia, já há juízes robôs. "A Letônia já está usando juízes robôs, como auxiliares. Faz pesquisa, modelo de redação, mas o juiz que vai autorizar, validar ou não", ressalta Allemand.>
"TRATO HUMANIZADO" >
No Brasil, há quem faça alertas sobre uma possível prevalência da tecnologia ante as capacidades humanas. "O olhar do juiz jamais deverá ser dispensado pela inteligência artificial. É nesses momentos de transformação, como o nosso, que devemos cobrar do juiz que ele saiba separar os processos e dar um trato humanizado, e não se ater a essa euforia da inteligência artificial", afirmou a ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Nancy Andrighi, em palestra em Vitória na última sexta-feira.>
"Cada processo é diferente, ainda que repetitivo. A inteligência artificial no processo é perigosa porque pode desconsiderar fatos típicos daquele caso específico", avalia o advogado Aroldo Limonge. Mas ele também louva medidas como a digitalização dos processos e procedimentos. "Tem ajudado muito.">
"O TRABALHO DO JUIZ É JULGAR">
Palavras como predição, machine learning e rede neural são pronunciadas com naturalidade pelo desembargador Samuel Meira Brasil Jr, corregedor-geral do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES).>
Com mestrado em Ciência da Computação, ele está à frente do CorE-IA (Centro da Corregedoria Estadual de Inteligência Artificial), criado, oficialmente, em maio. O objetivo é apresentar, até o final do ano, uma iniciativa em inteligência artificial a ser aplicada no Judiciário Estadual.>
Samuel Meira Brasil Júnior, desembargador
Ajudar os juízes a gerenciar procedimentos e o tempo de trabalho seria apenas uma das possibilidades tecnológicas.>
Também integra a lista a identificação de casos repetitivos que podem ser julgados simultaneamente e muito mais.>
Cite, por favor, um exemplo prático em que essa inteligência artificial poderia ser usada.>
No tribunal de Minas há uma iniciativa de utilização de um programa para identificar todas as demandas repetitivas. Ainda que as petições feitas pelos advogados sejam diferentes, com uma redação diferente, o programa identifica a causa de pedir e o pedido e consegue encontrar demandas repetitivas. Essas demandas são reunidas para que sejam julgadas simultaneamente.>
Com isso, conseguimos segurança jurídica porque não se corre o risco de decisões conflitantes, e conseguimos agilidade porque não há necessidade de esperar meses e até anos para julgar demandas repetitivas.>
Hoje a identificação de quais processos tratam da mesma coisa é "no olho", manualmente, e puxando pela memória? Pode ter coisa que está ficando de fora.>
Pode, perfeitamente. Até mesmo porque o ser humano é falho. Todos nós somos sujeitos a erro. Mesmo com a supervisão de um ser humano uma análise dessa pode escapar, que não seja enquadrado como sendo um caso repetitivo. A partir do momento que nós temos um algoritmo que faça essa verificação com um grau de aproximação nós vamos ter uma velocidade na identificação desses processos e com uma acurácia muito superior.>
E existem algumas experiências no exterior de utilização de inteligência artificial preditiva.É uma linha que estamos trabalhando para desenvolver na corregedoria.>
Como é isso?>
A partir da identificação de alguns padrões é possível dizer que o resultado vai ocorrer novamente. Por exemplo: identificar a repetição de determinados crimes para verificar a possibilidade do recidivismo no âmbito criminal. No exterior já foi feita uma experiência para gerar estatística.>
Precisa saber se a pessoa é reincidente ou não para calibrar a pena.>
Para calibrar a pena e até para uma eventual soltura enquanto se aguarda o julgamento do processo principal.>
Mas como que faz isso quando os processos ainda são físicos?>
Por isso uma das prioridades tem que ser a utilização do processo eletrônico, que vai agilizar a prestação jurisdicional, facilitar o acesso das partes e dos advogados. O processo eletrônico não tem volta. Você tem que estimular e aprimorar o mais rápido possível (o Processo Judicial eletrônico está implantado em 99 unidades da Justiça Estadual).>
Mas mesmo com o processo físico existe um sistema que utiliza os dados alimentados pelos servidores. Esses dados alimentados podem ser usados para uma base para uma construção de algumas ferramentas de inteligência artificial.>
Quando deve haver a implementação de alguma ferramenta de inteligência artificial no TJES?>
Até o final do ano já vamos lançar nossa primeira experiência pela corregedoria.>
Qual é o projeto?>
Prefiro esperar mais um pouco.>
Como a tecnologia pode afetar os juízes?>
O trabalho do juiz é julgar. Ele também tem entre as suas atribuições ser gestor da sua unidade judicial. Mas não podemos transformar um juiz, que é um profissional capacitado para julgar e que já tem um custo elevado para o Estado, num servidor que vai simplesmente gerir processos. Isso tem que ser uma atribuição da corregedoria que eu pretendo fazer, estou desenvolvendo uma iniciativa nessa linha, para deixar que o juiz cumpra a sua função principal, que é julgar.>
Uma inteligência pode gerar estatística e sugestões sobre como o juiz tem que manejar o trabalho.>
Isso. Por exemplo, podemos ver que há um crescimento de processos conclusos para decisão ou um crescimento do prazo de audiência. Esse manejamento inteligente do tempo pode auxiliar o juiz para decidir qual é a prioridade que ele vai dar.>
Hoje está muito na moda as ferramentas que fazem análises preditivas utilizando redes neurais e machine learning, que é o aprendizado de máquina.>
Falando assim parece coisa de ficção científica, mas não é. Ou é? Pode parecer que vai custar muito caro ou que precisa ter um supercomputador>
Esse computador na sua mão (o smartphone) tem capacidade muito superior aos de dez anos atrás. Isso já é suficiente para rodar um programa muito poderoso.>
Hoje no WhatsApp você dita e ele transforma em texto escrito. Hoje tem uma margem de erro muito pequena e à medida que você utiliza ele vai corrigindo e aprendendo.>
Você pode utilizar e isso vamos usar na corregedoria, algumas APIs que transformam a linguagem natural para texto e que você depois analisa o texto com um programa inteligente para apresentar resultados e o resultado em texto é convertido novamente em linguagem natural. E isso já existem diversos produtos no mercado, não preciso desenvolver.>
Não há necessidade de desenvolver uma tecnologia a que você já tem acesso. O escopo do nosso centro de inteligência artificial é desenvolver o que não temos acesso.>
Pode pegar emprestado de outro tribunal?>
Pode. Por exemplo, Rondônia desenvolveu o Sinapses. Eu conheci o Sinapses, que utiliza técnicas de redes neurais muito interessantes. Já conversei com o coordenador do CNJ e eles vão incorporar. Conheci o Radar, de Minas Gerais. Fui ao laboratório da IBM e conheci o Watson.>
Uma ferramenta que está sendo proposta e algumas estão em fase de teste: muitas audiências hoje estão sendo gravadas. No passado, a testemunhava ditava para o juiz, que ditava para o escrevente. Com todo respeito, isso já está ultrapassado. Há muito tempo os juízes já pedem para a testemunha ditar direto para o escrevente e hoje se grava. O que está em teste são programas que transformam o texto gravado em texto escrito.>
ALGUMAS INICIATIVAS>
TJRN>
O robô Poti é utilizado para execução fiscal e penhora de bens. Enquanto um servidor consegue executar no máximo 300 ordens de bloqueio ao mês, Poti leva 35 segundos para fazer o mesmo. >
TJPE >
A robô Elis faz a triagem de processos de execução fiscal, que são 53% de todas as ações em trâmite em Pernambuco. Ela confere dados da Certidão de Dívida Ativa (CDA) e se o processo prescreveu. Enquanto a triagem manual de 70 mil processos leva em média um ano e meio, Elis analisa pouco mais de 80 mil em 15 dias.>
TJMG>
O robô Radar ajuda magistrados a localizarem casos repetitivos e agrupá-los, procurando por palavras-chave. A ideia é que, quando alguém recorrer da decisão em primeira instância, modelos de recursos de casos similares já estejam pré-definidos.>
TJRO>
O robô Sinapses, no ar desde fevereiro de 2018, e faz uso de redes neurais. Ele possui um banco de dados de 44 mil despachos, sentenças e julgamentos, e seleciona decisões anteriores sobre o mesmo tema. Uma ferramenta chamada "gerador de texto" ajuda na elaboração de textos sugerindo palavras.>
(Com informações do jornal "O Estado de S. Paulo")>
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