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'Pensa diferente? Não presta'. O jeito perigoso de falar de política

"Pensa diferente? Não presta". O jeito perigoso de falar de política

32% dos brasileiros consideram que não vale a pena tentar conversar com quem tem visão política diferente, diz pesquisa. E isso pode não ser bom para a democracia

Publicado em 28 de abril de 2019 às 01:46

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A sociedade brasileira anda mais conectada do que nunca. E tão dividida quanto. A sequência de fatos que levaram o país das manifestações de 2013 até a eleição de outubro torna óbvia a constatação. Foi o pleito da briga política, que separou familiares em "bolsominions e petralhas", desfez amizades e empurrou pessoas para dentro de suas próprias bolhas ideológicas. Lidar com o pensamento antagônico tornou-se um fardo. E tudo isso, segundo especialistas, pode ser negativo à democracia.

É que ao bloquear ou evitar a divergência assumem-se as próprias convicções como verdades absolutas, mesmo podendo elas estarem baseadas em premissas equivocadas. 

"Quando as pessoas partem para filtrar o diferente, acabam vivendo na sociedade do 'eu sozinho'. Os próprios algoritmos da internet já mostram só o que eu gosto. Passamos de um universo amplamente diversificado para algo em que só vê o que gosta ou reforça a sua opinião. Então, acaba reforçando comportamentos e acreditando que todo o mundo pensa igual a você. Acho que isso é terrível para a democracia porque você não enxerga o diferente", analisou Felipe Tessarolo, professor de Mídias Sociais e Novas Tecnologias da Faesa.

É um uso que contrasta com a própria magia da internet. "Você acaba com a discussão. Antes, tinha-se a internet como lugar de encontro das diferenças, de encontrar coisas que estão fora da mídia tradicional, coisas que geralmente não são discutidas", pontuou Tessarolo.

Ilustração para a matéria sobre o radicalismo político . (Arabson)

Evitar o outro é algo que impacta radicalmente a democracia, um regime de diversidade de opiniões. A avaliação é do professor de Ciência Política da USP, José Álvaro Moisés.

"A democracia é um mecanismo para contemplar o fato de que, em sociedades complexas e desiguais, os interesses são diferenciados, há pontos de vista antagônicos. Ela serve para processar as diferenças. Isso implica em legitimar a diferença de opinião e, mais do que isso, entender que os outros têm opiniões diferentes", disse.

PESQUISA

Há dados que evidenciam o isolamento. Nada menos que 32% dos brasileiros acreditam que não vale a pena tentar conversar com pessoas portadoras de visões políticas diferentes das suas.

O índice é maior que a média de 27 países pesquisados pelo Instituto Ipsos. O Brasil só fica atrás dos resultados de Índia e África do Sul. Nestes países, respectivamente, 35% e 33% disseram não perder tempo tentando aproximação com donos de outras visões políticas.

Mesmo nos Estados Unidos, com toda a tensão relacionada ao tema da imigração e do governo Donald Trump, o percentual é mais baixo: 22%. Divulgado no mês passado, o estudo colheu impressões de 19,7 mil pessoas desses países.

"BURRO, LADRÃO, HOMOFÓBICO"

As redes sociais estão repletas de sinais que desvendam a pesquisa. Elas são o terreno no qual preferir um líder a outro faz de alguém automaticamente "burro, machista, homofóbico" ou "burro, ladrão igual a ele".

Professor de Ciência Política da FGV, Sérgio Praça destaca que as democracias são, por natureza, conflituosas e a polarização política é tão natural quanto a oscilação do nível dela de tempos em tempos. O perigo está quando o pensamento diferente transborda para a agressividade.

"Essa polarização não é perigosa para a democracia. É até natural. Às vezes tem mais e às vezes, menos. O que é ruim é a natureza do debate ser a agressividade, que pode ser pouco civilizada. Isso é ruim para a qualidade da democracia", frisou.

Por outro lado, como aspecto positivo da polarização, Praça salienta o fato de nomes e perfis de ministros passarem a fazer parte de conversas cotidianas de mais pessoas, assim como os desfechos das prolixas reuniões das comissões de Constituição e Justiça do Congresso.

PORQUÊS

Mas o que trouxe a sociedade brasileira até aqui? Por que está tão difícil conversar com o oposto? O doutor em História Social pela UFRJ e mestre em Antropologia e Sociologia pela Hebrew University of Jerusalem Michel Gherman tem algumas teses.

Para ele, as redes sociais permitiram uma "nova tribalização" das pessoas. Nos sites, elas encontram pessoas que jamais se viram, mas compartilham ideias. Assim, percebem-se mais fortes do que nunca foram – ainda que isso signifique a organização e o fortalecimento de grupos de "terraplanistas" e de céticos de vacinas amplamente provadas pela ciência.

Além disso, prossegue Gherman, vive-se uma crise de representação, em que as pessoas buscam se autorrepresentar.

"Quando a informação é produzida a partir de um lugar retribalizado, é produzida uma informação que só faz sentido para as pessoas que concordam com esse tipo de informação. O lugar comum, o meio-campo, a praça pública, perdem sentido. O que passa a fazer mais sentido são as informações que façam eco com aquilo que você acha, mesmo que as informações não sejam verdadeiras. Vemos uma quantidade estúpida de informação, mas com muito pouco a ver com formação. Tem a ver com destruir o outro para mostrar que determinado tipo de informação é mais importante que a verdade", frisou Michel Gherman.

Ele estará no Encontro do Saber para uma apresentação sobre "Extremismos no Século XXI", na Rede Gazeta. O evento será no dia 7 de agosto.

Doutor em Psicologia e professor da Ufes, Elizeu Borloti também sublinha que o excesso de informações disponíveis permite que sejam buscadas aquelas que reforçam convicções.

"Hoje em dia escolhemos a informação. Temos descrédito da mídia tradicional e acesso a subgrupos midiáticos, onde tende a confirmar estereótipos de identidade. Isso vai fortalecendo a identidade grupal. O problema é achar que tem que eliminar o outro, estratégia da esquerda e da direita", afirmou.

RADICALISMO NO MUNDO

O radicalismo político não é uma jabuticaba, cultivada apenas em terras brasileiras. O fenômeno é internacional. Há relevantes níveis de intolerância em vários países do mundo, inclusive nas grandes democracias. É o que mostram os números do estudo do Instituto Ipsos.

Nos 27 países pesquisados, 41% dos entrevistados disseram que, graças às divisões causadas por pessoas com visões políticas diferentes, sentem a sociedade mais perigosa do que era há 20 anos. Significa dizer que duas em cada cinco pessoas pensam assim.

No topo do ranking, Suécia e Estados Unidos, onde 57% disseram que as coisas pioraram em duas décadas. Em seguida, aparecem África do Sul e França, com índice de 53%, cada.

O ranking prossegue com Reino Unido, Alemanha e Colômbia, com 47%. No Brasil, esse índice é de 44%.

Enquanto a Europa enfrenta o tema da imigração e do Brexit – a saída do Reino Unido da União Europeia –, os Estados Unidos debatem a necessidade da construção de um muro na fronteira sul para dificultar a chegada de imigrantes. A ideia é incentivada pelo presidente do país, o republicano Donald Trump, e encontra resistência na oposição, liderada por políticos do partido democrata.

"A primeira coisa a frisar é que o fenômeno (da agressividade) é mundial. Não é limitado ao Brasil. A gente vê nas principais democracias modernas, na Índia, nos EUA e na Inglaterra. Está longe de ser algo específico", frisou o professor de Ciência Política da FGV Sérgio Praça.

O especialista também avalia que os motivadores da divisão política são variados nas diferentes regiões.

"Certamente, na Europa é a questão da imigração, algo que foi, digamos, importado para os EUA pelo Trump. No Brasil não é isso. A imigração não é uma questão aqui. Acho que muito dessa agressividade é por conta do Bolsonaro, do PT e do Lula com retóricas agressivas. É um reflexo meio natural da campanha do ano passado, muito única, conturbada, com partidos enfraquecidos e facada em candidato", destacou.

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