Publicado em 2 de novembro de 2018 às 19:49
Para escrever seu mais recente livro "História da Riqueza no Brasil: cinco séculos de pessoas, costumes e governos", o historiador e jornalista Jorge Caldeira mergulhou em mais de 500 anos de nosso passado, mas não através de uma investigação convencional. Com o auxílio da tecnologia, transformou registros históricos em dados sistematizados e, a partir dos números, decifrou uma nova concepção do processo de desenvolvimento da nação, na qual o mercado interno e os pequenos empreendedores ganham uma relevância até então desconhecida.>
Mas ao remontar a complexidade das relações entre família, sociedade e poder ao longo dos séculos, Caldeira aproximou-se também das raízes da democracia brasileira, que segundo ele, tem início pouco depois de 1500. Diante do cenário de crise que atinge as instituições brasileiras no presente, o historiador não hesita em dizer: embora as ameaças sempre existam, o sistema democrático no Brasil é estável e as classes mais pobres estão mais preparadas para sustentá-lo.>
Justamente para falar sobre o assunto, Jorge Caldeira chega esta semana em Vitória para participar do 6º Fórum Liberdade e Democracia, promovido pelo Instituto Líderes do Amanhã ao longo desta segunda e terça-feira. Confira a entrevista completa:>
O que mudou em História da Economia quando a tecnologia passou a ser usada nas pesquisas?>
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Todos os alunos de História do Brasil aprenderam o melhor que se podia aprender com a documentação vista do modo tradicional. Por exemplo, que o sentido da colonização brasileira foi mandar a riqueza para fora; a organização do latifúndio permitia que o setor exportador concentrasse toda a riqueza e o setor interno fosse pobre. Então, a metrópole era rica e as colônias eram pobres. Essa era a regra. Bom, quando você vai ver o dado, no fim do período colonial a economia brasileira era o dobro da economia de Portugal. A interpretação tradicional então cai por terra. A tecnologia não muda só o dado, ela traz uma nova visão e um novo problema, que passa a ser o contrário. O conhecimento é de outra natureza e ele obrigou a gente a ver o que não se via antes: que o grosso da riqueza produzida no Brasil desde o primeiro contato com os europeus era produzido pelos pequenos proprietários, empreendedores e em geral no interior e no Sertão. Isso é a base da produção e da riqueza econômica do Brasil. Essa é a grande mudança interpretativa que o meu livro traz com relação ao passado.>
O que agora se vê é que todas as pessoas eram produtoras de riqueza, eram capazes de produzir mais do que consumiam e, portanto, tinham capacidade para trocar ou acumular. Isso vai do índio até o mais rico brasileiro. O conceito anterior que se usava em todas as versões ideológicas era de que só tinha riqueza no setor exportador e que todo o mercado interno e o sertão viviam da economia de subsistência. Este conceito precisa ser completamente abandonado para que a gente consiga entender como se formou a riqueza no Brasil. O grosso dos produtores, cerca de 80%, eram pequenos produtores familiares, que produziam também algo em torno de 80% da riqueza da época e que faziam com que a economia crescesse. A ligação entre essas pessoas pelo costume, pelo casamento, pelas festas, pela convivência e o modo de viver é que permitiam a formação da riqueza independente dos governos. Era o cara que criava um pouquinho de gado no interior do Piauí que ficava acumulando riqueza. O governo era colonial e não estava interessado em desenvolver a Colônia. Os governos locais que existiam, as vilas, tinham eleições desde o início para vereadores. Esse governo que é eleito e instável é a base da vida política do Brasil, que permitia que os costumes das pessoas tivessem um mínimo de oficialização e de uma economia formal. Havia os donatários também. Havia então dois governos locais que ajudavam no progresso porque tinham mais interesse no desenvolvimento. Isso ocorreu por muito tempo.>
Se recorda de algum período na História que lembre esse momento que estamos vivenciando hoje?>
O exemplo da História é sempre possível. Um exercício que eu fazia nos governos de Lula é que cada vez que ele falava "pela primeira vez na história deste país", eu lembrava ao menos de uns 70 casos antecedentes, que podem ter ou não relação. Sempre é possível buscar lições na História, mas elas servem pouco quando se está vivendo mudanças. No que se refere à campanha eleitoral e não ao governo, que vai começar em janeiro, certamente essa foi uma campanha que rompeu com preceitos que vinham de décadas, especialmente porque o vencedor fundou sua estratégia na internet e não na TV e o preceito firme até ontem de que todo o candidato que tem mais tempo de TV ganha a eleição deixou de valor.>
Essa mudança na interpretação da História obrigava a gente a entender a política de um outro jeito. Tem que se valorizar outra coisa que não é o Estado central. Eleição municipal é importante. A capitania e depois a província é importante. E isso tem peso na História.>
O senhor já disse que o problema dos políticos é a falta de comprometimento com a palavra? Por quê?>
O Brasil tem uma outra mudança mais recente. Essa eleição que aconteceu é a primeira em que toda a população com menos de 20 anos foi para a escola, é alfabetizada. Porque em 1998 que chegou a 100% das escolas na escola. Nos Estados Unidos isso aconteceu um século antes. A existência do analfabeto gerava duas possibilidades na vida política. A primeira, que foi largamente empregada no Brasil, foi excluir o analfabeto do voto, que aconteceu entre 1979 e 1985. Então, quando os políticos faziam promessa para os seus eleitores, eles faziam promessa para a metade da população quando o analfabetismo era de 50%. Isso gerou um tipo de discurso populista que tem pouco vínculo entre o que se fala e o que de fato é porque se estava falando para pouca gente. Agora isso não é mais verdade e crescentemente tem sido um problema porque os políticos são um pouco atrasados para perceber essas mudanças. Quando um político faz uma promessa, como o Collor fez em 1989 dizendo poupança é sagrada e em seu primeiro ato ele rompe com o sagrado da poupança e com o sagrado da palavra dele, criou um problema. Quando a Dilma diz na campanha de 2014 vamos manter as conquistas sociais, vai ficar tudo bem, e o seu primeiro ato é acertar as contas, que estavam realmente nas últimas, e isso provoca uma recessão gigantesca, isso é um problema. Eu não creio que esse problema tenha sido resolvido. O empenho da palavra por políticos em relação à população é um empenho muito vago e o cumprimento dela é um problema cada vez mais grave. Esta é a substância do voto: o eleitor confia na palavra de alguém e vota nele, ele transfere o poder que ele tem para um dirigente do país que, em nome dele, deveria estar fazendo o que disse. Bolsonaro fez alguma palavra que a população achou que era boa e votou nele. Mas só se vai saber que a palavra está sendo cumprida a partir de janeiro de 2019. Um presidente não é julgado pelo que fala e sim pelo que entrega. O julgamento histórico só vem depois que acaba o governo.>
Historicamente, qual é a relação do país com a liberdade e a democracia?>
Se você olha a partir da base, da vila, do governo local, a democracia é extremamente estável. Quer dizer, as autoridades são eleitas, ficam no poder só por um mandato, devolvem o poder, outra pessoa é eleita e vai se alternando quem está no poder. Isso acontece nas vilas brasileiras desde a sua fundação até hoje. Vitória, por ter sido fundada em 1551, que é um pouco antes de São Paulo, deve ter mais ou menos 170,180 legislaturas eleitas. Se você enxerga isso, enxerga a base estável da democracia no Brasil e ela é realmente estável. Não tem ditador local, não tem golpe, mesmo uma pessoa muito rica respeita que tenha o vereador, que haja eleição e assim é até no sertão mais invio. Se você pega a esfera mais intermediária de governo, que são as capitanias, depois províncias, essa é uma instância onde o grau de existência democrática é menor. Isso vem da República. A eleição de governador vem da República, antes era ou um dono hereditário ou um delegado do poder central. Mas quando começou a ter eleição ali, ela funcionou. Há uma outra instância democrática no Brasil que é o Congresso Nacional, que começou a funcionar no Brasil em 1823, na Constituinte, e em 1826, no Parlamento normal. Desde então funciona, são 180 anos de funcionamento normal. Só há dois congressos no mundo ocidental que funcionam há mais tempo que o do Brasil, que são o da Inglaterra e o dos Estados Unidos. O Congresso do Brasil funciona há mais tempo que o da França, o da Alemanha, o do Japão, para não falar de Portugal, onde só começou a funcionar no final do século 20. Portanto, ela é uma instituição que funciona bem no Brasil e não é de origem portuguesa. Esse é um esteio da vida democrática brasileira. O governo executivo central, que só teve um eleito durante o Império em 1835 e depois só o Prudente de Morais acabou sendo eleito pelo povo brasileiro em 1894. Daí em diante já houve mais de 20 ciclos eleitorais e a maior parte funcionou bem. Quer dizer, houve problemas de autoritarismo, houve ditaduras, houve períodos de presidente eleito só pelo Congresso, um Congresso com poucos poderes, mas funciona. Então, a democracia na base teve maior profundidade do que no topo da sociedade brasileira. O pobre está mais preparado para a democracia que o rico. A figura do interior está mais preparada que o esperto da capital. Mas neste sentido eu acho sim que o Brasil tem raízes históricas profundas que fundamentam a vida democrática. A ameaça vai sempre existir, quem quer romper com a democracia quer fazer isso concentrando o poder do governo central.>
Houve vários períodos ditatoriais no Brasil, mas o regime militar, de fato, especificamente criou uma condição que é um presidente da República com um mandato eleito pelo Congresso por tempo determinado, ainda que fosse um ditador militar. Então, é uma restrição formal, manteve a formalidade da outorga do poder pelos representantes eleitos. Não há dúvidas de que aquilo se tratava de uma ditadura, mas até dentro da ditadura havia essa formalidade. Quando o Costa e Silva teve um derrame e não quiseram dar posse ao vice, uma junta militar assumiu a ditadura, mas a primeira providência dela foi abrir o Congresso para dar mandato para o novo general que ia comandar, o Médici.>
É difícil entender isso, mas mostra que até o autoritarismo extremo está sujeito a certas normas que vêm da tradição democrática brasileira. Ditador mesmo no Brasil, por mais de um ano, só houve um, que é civil: Getúlio Vargas. Foi o único ditador da República que não tinha mandato, que não tinha contraponto de poderes, mandava em tudo, etc, durante o Estado Novo e durante o regime provisório. Não havia um mandato de presidente da República, mas sim um cargo.>
O senhor já disse em outros momentos que o país perdeu o bonde da história. Em que se sentido?>
O Brasil entre 1890 e 1970 (quando começou a globalização) foi a economia que mais cresceu no mundo. De 1975 em diante, o declínio desse crescimento é acentuado e, em 1986, a economia do país passa a crescer menos do que a média do mundo e é assim desde então. O Brasil que era um campeão do desenvolvimento hoje é um dos campeões do atraso. Desenvolvimento e atraso não querem dizer o quanto a economia cresce ao ano e sim quanto o Brasil cresce a mais ou a menos do que a média do mundo. Se você anda mais devagar e todos andam mais depressa, você atrasou e você está andando para frente. É nesse sentido que eu digo que estamos perdendo o bonde.>
Qual a influência da crise política e econômica sobre os rumos do país?>
Se você pega esses 520 anos de história econômica brasileira, o Brasil tem 400 bons anos e 120 ruins. Dos 120 ruins, 70 anos estão no Império, que foi o período de estagnação no qual o país não cresceu e guarda uma semelhança com o que está acontecendo agora. Quer dizer, a economia vinha crescendo antes e, embora continue crescendo muito pouco, o mundo cresce muito mais. No Império, em 1800, a economia do Brasil era maior que a dos Estados Unidos. Em 1890 era 15 menor. Isso é o que dá ficar para trás em um século. Na globalização, em 1972, o PIB do Brasil era maior do que o PIB da China. O Brasil não foi pra frente e a China foi. Hoje, o PIB lá hoje é seis ou sete vezes maior que o do Brasil. São só 46 anos. Então, as oportunidades da economia em História são complicadas. A situação muda muito rápido. O Brasil perdeu muitas oportunidades, mas como tem 400 bons anos, ele também tem muitas virtudes e pode agarrar oportunidades para fazer a coisa certa.>
PARA LER>
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História da riqueza no Brasil cinco séculos de pessoas, costumes e governos>
Autor: Jorge Caldeira>
Editora: Estação Brasil>
Páginas: 624>
Segmento: História Econômica>
Preço: R$ 69,90>
e-book: R$ 49,90>
SERVIÇO>
6º Fórum Liberdade e Democracia O Brasil que eu faço>
Quando: 5 e 6 de novembro.>
Local: Arena Shopping Vitória. Avenida Américo Buaiz, 200, Ilha do Boi, Vitória.>
Palestrantes: Eduardo Mufarej, Jorge Caldeira, Claudia Costin e Eduardo Wolf.>
Inscrições: a programação completa do evento realizado pelo Instituto Líderes do Amanhã e os ingressos podem ser adquiridos através do site www.forumvitoria.com.br.>
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