Publicado em 29 de março de 2019 às 19:19
Uma das primeiras iniciativas da ditadura militar após o golpe de março de 1964, que agora completa 55 anos, o Serviço Nacional de Informações (SNI) estendeu seus braços de espionagem sobre 249 órgãos públicos diversos como ministérios, autarquias, fundações e estatais. No início dos anos 1980, seu próprio idealizador, o general Golbery do Couto e Silva (1911-1987), reconheceu que tinha "criado um monstro".>
A lei que instituiu o SNI foi assinada pelo primeiro presidente da ditadura, o general Castello Branco (1897-1967), em 13 de junho de 1964. O projeto foi enviado ao Congresso em maio e aprovado a jato.>
Em 11 de junho, a "Folha de S.Paulo" noticiou que a criação teve a oposição de apenas dois deputados federais, Mem de Sá (PL-RS) e Padre Calazans (UDN-SP). Mem de Sá elogiou Castello mas, em tom premonitório, ponderou que o SNI "poderá se transformar num instrumento, sem controle, de opressão e até de subversão, e um presidente que queira promover a subversão encontrará legalizado um instrumento ideal para o seu objetivo".>
O deputado chamou a atenção para o trecho do texto que dizia que o SNI estava "isento de quaisquer prescrições que determinem a publicação ou divulgação de sua organização, funcionamentos e efetivos".>
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Além disso, a lei também autorizou o chefe do SNI, com status de ministro, a "promover a colaboração, gratuita ou gratificada, de civis ou militares, servidores públicos ou não, em condições de participar de atividades específicas", mediante "gratificação especial fixada anualmente pelo presidente da República".>
Com tais liberdades e um amplo leque de ação, ao longo de 26 anos, até ser extinto pelo presidente Fernando Collor em 1990, o SNI criou imenso arquivo de informações. Levantamento dos pesquisadores da coordenação regional do Arquivo Nacional (AN) Vivien Ishaq e Pablo Franco apontou que foram produzidos pelo menos 308 mil prontuários de pessoas e instituições, registrados em 220 mil microfichas e 74 caixas-arquivo.>
Esses números, porém, são apenas um pedaço da produção total do SNI. Foi o que escapou do processo de destruição desencadeado no final da ditadura - milhares de documentos foram incinerados nos anos anteriores à redemocratização, em 1985 - e restrito ao que estava arquivado no próprio SNI.>
Porém, cada órgão público vinculado à rede do SNI também mantinha seu próprio arquivo, alimentados por braços denominados DSI (Divisão de Segurança e Informações) e ASI (Assessoria de Segurança e Informação).>
Apenas da DSI do Ministério das Relações Exteriores, por exemplo, o AN recebeu 667 caixas-arquivo com memorandos e telegramas trocados entre o ministério e os diversos órgãos de segurança e informações e dossiês individuais produzidos pelas missões diplomáticas brasileiras. No Ministério da Saúde havia 60 caixas-arquivo. Na Universidade de Brasília, 56 caixas-arquivo guardavam as fichas de professores e alunos.>
ESPIONAGEM>
Autor de "Como eles agiam - Os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política" (Record, 2001), o historiador e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Carlos Fico teve acesso aos primeiros arquivos das DSIs ainda no começo dos anos 1990.>
Segundo o pesquisador, o SNI funcionou precariamente de 1964 a 1969, mas depois da implantação do Sisni (Sistema Nacional de Informações), em 1970, ele ganhou corpo com a agregação dos DSIs e das ASIs dos órgãos públicos, dando origem a "uma grande rede de espionagem". Só o SNI chegou a ter 2.500 funcionários.>
"Frequentemente, os órgãos que integravam o Sisni ultrapassavam o levantamento das opções políticas das pessoas investigadas, registrando também dados - muitas vezes falsos - sobre a sexualidade, os relacionamentos e outros aspectos da vida privada dos brasileiros tidos como 'inimigos do regime'", disse Fico.>
O historiador observou que todos os países, inclusive os democráticos, contam com órgãos de informação capazes de fornecer ao Executivo dados estratégicos para a tomada de decisões, mas durante a ditadura o Sisni "passou a espionar a vida dos cidadãos brasileiros, alimentando dossiês com informações que pudessem eventualmente inculpar os inimigos do regime".>
As informações também serviam de base para as prisões efetuadas pelos órgãos da inteligência que formavam outro organismo, o Sissegin (Sistema de Segurança Interna do País), que coordenava centros de tortura como os DOI-Codi do Exército.>
A tarefa de executar prisões, interrogatórios e tortura ficava nas mãos da tríade da inteligência militar: o CIE (Centro de Informações do Exército), o Cenimar (Centro de Informações da Marinha) e o Cisa (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica).>
Fico descreve que havia troca frenética de informações entre os órgãos de informação. Os papéis eram enviados ao primeiro escalão do governo e outros gestores que tivessem relação com o tema analisado, como presidentes de estatais e reitores universitários.>
Os documentos eram sempre sigilosos e classificados como reservados, confidenciais, secretos e ultrassecretos. As fontes recebiam letras que variavam de "A", a mais crível, a "F". A veracidade da informação contida no documento era classificada de notas de 1 a 6. Uma informação tida como verdadeira e oriunda de uma fonte altamente confiável recebia a classificação "A1".>
Os braços do SNI nos ministérios "foram muito atuantes e prejudicaram muito os brasileiros, vários dos quais nem ao menos sabem que foram atingidos", afirmou Fico.>
"Alguém cogitado para um determinado cargo, se fosse suspeito aos olhos da 'comunidade de informações', certamente não seria nomeado, pois seu chefe teria recebido um 'informe' condenatório.">
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