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Militares, juízes e promotores: direito para alguns é maior do que para outros

Militares, juízes e promotores: direito para alguns é maior do que para outros

Leis foram criadas para proteger as categorias de coação e perseguição. Em alguns casos, porém, são usadas indevidamente para autoridades se livrarem de punições

Publicado em 15 de julho de 2019 às 02:08

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Leis são diferentes para algumas categorias. (Arabson)

Apesar de a Constituição Federal consagrar que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, a algumas profissões foram conferidos instrumentos de defesa e proteção, caso tenham que responder por algum ilícito.

Originalmente, essas prerrogativas foram criadas para resguardar certas autoridades de coação e perseguição da sociedade ou de outros agentes públicos. Pelo fato de possuí-las, presume-se que terão uma maior garantia de que poderão exercer suas atividades com liberdade.

Dessa forma, militares, magistrados, membros do Ministério Público, advogados e agentes políticos com mandato eletivo possuem alguns direitos diferenciados do cidadão comum no momento em que são autuados, presos e processados. Alguns deles possuem ainda o foro privilegiado, para definir quem será a autoridade competente para o julgamento.

Um problema surge, no entanto, quando algumas dessas categorias utilizam de forma indevida os benefícios que a lei lhes confere para escapar de algum tipo de punição.

No último mês, um major da Polícia Militar do Espírito Santo se recusou a fazer o teste do bafômetro após se envolver em um acidente e ser abordado por policiais do Batalhão de Trânsito. Ele exigiu que um policial mais antigo acompanhasse a ocorrência. Como não foi possível localizar o oficial que seria responsável por fazê-lo, ele indevidamente deixou o local.

No cenário nacional, também não faltam casos. Em 2016, quando foi determinada a prisão do vice-almirante da Marinha Othon Luiz da Silva, na Operação Lava Jato, ele resistiu à condução à prisão, feita por policiais federais com ordem judicial, argumentando que para o cumprimento seria necessário no mínimo alguém de posto equivalente ao dele no local.

Embora de fato existam algumas prerrogativas no tratamento dessas categorias, isso não pode ser entendido como estar acima da lei, ou lançar mão do tradicional "você sabe com quem está falando?", conforme apontam especialistas.

No caso dos militares, o Código de Processo Penal Militar prevê que a prisão provisória, seja em flagrante ou cautelar, deva ser feita por outro militar de posto ou graduação superior; ou, se igual, por um militar mais antigo. No entanto, em regra, isso só se aplica para casos em que policiais, bombeiros e membros das forças armadas estejam sendo acusados de crimes militares.

"Em caso de crime comum, a prisão em flagrante de militar não necessariamente precisa ser realizada por militar, assim como a lavratura do flagrante, que deve ser feita normalmente pelo delegado de polícia. Somente crimes militares são formalizados em estabelecimentos militares", explicou o advogado criminalista e mestre em Direito, Fabrício Campos.

No entanto, por respeito ao tradicionalismo e considerando valores militares da autoridade e da hierarquia, na prática, em quase todo tipo de ação policial, invoca-se a presença do superior, de acordo com o presidente da Comissão de Direito Militar da Ordem dos Advogados do Brasil – seccional Espírito Santo (OAB-ES), Tadeu Fraga.

"Um cabo fazer uma detenção de um oficial, por exemplo, é uma subversão da lógica deles. Não é feito até para preservar o subordinado, pois depois eles vão ter que lidar um com o outro no serviço. Por isso, sempre pedem o acompanhamento de alguém com ascendência funcional. E isso não deve ser tido como um privilégio, já que a pessoa terá que responder pelo crime da mesma maneira", frisou.

Para algumas categorias, todas elas ligadas ao universo jurídico, a prisão provisória só pode ocorrer em situações muito restritas. Juízes, promotores e advogados só podem ser presos em caso de flagrante de crime inafiançável, ou por ordem judicial. Durante a prisão, eles também têm o direito de serem acompanhados por um membro do Judiciário, do Ministério Público e da OAB, respectivamente.

RELEMBRE ALGUNS CASOS

Major foge de blitz

Abordagem

No último mês de junho, o major da Polícia Militar Almir da Cruz se envolveu em uma batida de carro, com um veículo da Casa Militar. Mesmo com sinais de embriaguez, se recusou a fazer o bafômetro, conforme ordenou o Batalhão de Trânsito.

Hierarquia

Ele exigiu que um policial mais antigo acompanhasse a ocorrência. Como no momento não foi possível, e contrariando a orientação dos policiais de que fizesse o teste, ele deixou o local.

Vice-almirante Othon

Operação Lava Jato

Em 2016, o vice-almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, que serviu à Marinha por 40 anos, foi alvo da Operação Lava Jato por suspeita de recebimento de propina na usina nuclear Angra 3.

Ordem

Por mandado judicial, foi determinada a prisão temporária de Othon. No entanto, precisou ser imobilizado para ser preso pelos policiais federais. Ele alegava que deveria haver no mínimo um vice-almirante no local.

Recusa de soldado

Confusão em bar

Em abril deste ano, um soldado da PM foi preso após agredir o dono de um bar e atirar para o alto. Lucas de Figueiredo Pereira foi levado para a delegacia, mas se recusou a prestar depoimento ao delegado e a assinar a ocorrência.

TRATAMENTO ESPECIAL TEM RAIZ HISTÓRICA 

A existência de um tratamento legal diferenciado para algumas classes, quando cometem algum tipo de irregularidade, tem raízes tanto na forma hierarquizada como ocorreu a construção da sociedade brasileira ao longo da História quanto pela força do poder político dessas classes, sempre influentes na elaboração das leis.

O fato é que as regras que dispõem que juízes, promotores, advogados, militares e políticos só podem ser presos cautelarmente em hipóteses mais restritas e têm a garantia de que ficarão reclusos em locais diferentes e separados de presos comuns, embora se justifiquem pela proteção dada a seus cargos, alguns deles em funções de Estado, criam diferenciações entre as categorias e os demais cidadãos.

O professor de Ética da Universidade Mackenzie, Gerson Leite de Moraes, lembra que nas primeiras décadas do século passado, apesar de o poder ainda estar verdadeiramente com os militares, o período ficou apelidado como "República dos Bacharéis" pelo barulho que faziam os formados em Direito, que dominavam os conchavos políticos de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Salvador. Depois da Constituição de 1988, os setores ligados ao Judiciário ganharam ainda mais poder.

"Em um ambiente em que todos sempre foram desiguais perante a lei, a desigualdade não era vista como problema, ela era tradição. No Brasil, portanto, ficou uma ideia de que todos tradicionalmente lutam por privilégios, não por igualdade de oportunidades ou mesmo igualdade perante a lei. O resultado disso é que sempre se acatou a força do lobby de determinados grupos na elaboração da legislação", aponta Moraes.

Julio Cesar Pompeu, professor de Direito da Ufes. (Carlos Alberto da Silva)

A diferenciação entre o que é um privilégio e o que é uma proteção necessária para cumprir uma função precisa ser feita rigidamente, na prática, para que condutas abusivas não continuem a ser naturalizadas, destaca o professor de Ética e Teoria do Estado da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Júlio Pompeu.

Ele relembra o caso de um juiz do Rio de Janeiro, que alcançou repercussão nacional em 2011. Ao ser parado em uma fiscalização por uma agente de trânsito do Detran, que determinou que veículo dele, em situação irregular, fosse rebocado, o magistrado deu voz de prisão à servidora. No momento, ela chegou a dizer: "É juiz, mas não é Deus".

"No Brasil, confunde-se muito as coisas, por conta de nossa cultura elitista. Pessoas acreditam que são melhores que as outras como se fossem por natureza, e essas diferenças, que foram construídas, são tratadas como naturalmente aceitas. Essa naturalização faz com que algumas pessoas ajam como se a lógica da prerrogativa tenha que extrapolar a proteção ao exercício da função", afirma Pompeu.

Razões

A importância de certas prerrogativas existirem está também relacionada às questões da vida prática desses cargos, argumenta a professora de Teoria do Direito da Ufes, Margareth Zaganelli.

É por essa razão que magistrados e promotores só são presos se houver decisão judicial e não podem ser indiciados em inquérito policial.

"Por exemplo, um juiz que passa a vida toda dando ordem a delegados não pode, de repente, ficar sujeito à perseguição por alguém que se sinta incomodado. Juízes e promotores passam a vida condenando os outros e precisam ter alguma garantia para exercer seu trabalho. Em todo o mundo há essa reserva”, explica.

As proteções dadas aos advogados, segundo o advogado Tadeu Fraga, que preside uma comissão da OAB-ES, se justifica para que haja cautelaridade no processo e para que ele possa ter a imagem pública preservada. "Há amparo constitucional e é considerada uma função essencial à própria República. Não é razoável que um advogado que ainda não foi condenado fique junto com outros presos."

O presidente da Associação Espírito-Santense do Ministério Público, Pedro Ivo de Sousa, também considera as prerrogativas imprescindíveis.

"A prerrogativa não tem a ver com o bem-estar do membro, e sim com o exercício regular do que lhe cabe", diz.

ENTENDA AS PRERROGATIVAS

Militares

Quem tem direito?

Oficiais das Forças Armadas, policiais militares e bombeiros militares.

A que tem direito?

- Prisão provisória em crimes militares

A prisão deverá ser feita por outro militar de posto ou graduação superior; ou, se igual, por um mais antigo.

- Prisão em quartel

Militares, inclusive os da reserva, remunerada ou não, e os reformados têm direito a ser presos em quartel, quando ocorrer prisão preventiva.

Juízes

Quem tem direito?

Juízes, desembargadores e conselheiros dos Tribunais de Contas, por equiparação.

A que tem direito?

- Prisão provisória

Só pode ocorrer por ordem judicial do tribunal competente, salvo em flagrante de crime inafiançável. Deve haver acompanhamento pelo presidente do tribunal.

- Local da prisão

Deve ser recolhido em sala especial de Estado Maior.

Membros do Ministério Público

Promotores e procuradores de Justiça

A que tem direito?

- Prisão provisória

Só pode ocorrer por ordem judicial, salvo em flagrante de crime inafiançável. Deve haver a comunicação e a apresentação do membro para acompanhamento do procurador-geral de Justiça.

- Local da prisão

Deve ser recolhido em sala especial de Estado Maior.

Advogados

A que tem direito?

- Prisão em flagrante

Caso seja decretada a prisão em flagrante do advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, em caso de crime inafiançável ou por motivo ligado ao exercício da advocacia, é garantido ao profissional a presença de um membro da OAB, de acordo com o Estatuto da Advocacia.

- Local da prisão

O profissional tem direito à prisão provisória em sala de Estado Maior (local existente nos quartéis das Forças Armadas e Auxiliares).

Cargos eletivos

Quem tem direito?

Deputados federais, senadores e deputados estaduais

A que tem direito?

- Imunidade prisional

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Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Neste caso, os autos serão remetidos dentro de 24 horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.

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