Publicado em 26 de fevereiro de 2019 às 02:32
Por cerca de quatro anos, o professor de Direito da Ufes Ricardo Gueiros Bernardes Dias viveu nos Estados Unidos para pesquisas do doutorado e do pós-doutorado. Percorreu gabinetes de juízes e acompanhou o trabalho de promotores de Justiça para estudar um assunto que voltou ao debate público no Brasil o Congresso já fez discussões a respeito anos atrás após ser incluído no pacote de medidas anticrime do ministro da Justiça, Sérgio Moro: o plea bargaining (fala-se plí bárguenin), uma possibilidade de acordo com o acusado para que ele confesse o crime e possa barganhar uma pena menor sem ir a julgamento.>
O instrumento é um dos pontos das propostas legislativas apresentadas por Moro e que serão debatidos pelo Congresso. O fato de o nome gringo não ter sequer uma tradução ao português consolidada é só uma das várias críticas que a importação da proposta já recebeu. Entre as principais está a chance de o plea bargaining virar uma saída menos dolorosa para inocentes que temem uma condenação injusta em um julgamento futuro. Ou seja, a injustiça em si.>
Também há prós a serem colocados na balança pelos que defendem esse instituto. Sem a necessidade de esperar todo o trânsito de um processo, a Justiça pode ganhar celeridade e ser desafogada. Além disso, confessando culpas para barganhar punições menores, criminosos ficariam menos tempo na cadeia e isso poderia representar um alívio na superlotação das prisões. Não é todo criminoso que está disposto a encarar um longo processo judicial vivendo diariamente com a expectativa de desfecho ruim.>
As pesquisas de Ricardo Gueiros foram feitas na Califórnia, um Estado predominante dominado pelo partido democrata (de Barack Obama e Hillary Clinton) e no Texas, território dos republicanos (como George W. Bush e Donald Trump). Apesar das diferenças legislativas entre os Estados norte-americanos, o professor sublinha uma marca inimitável da barganha nos Estados Unidos: lá, o mecanismo não está previsto em lei, mas está fortemente impregnado na cultura do país há mais de 200 anos e vale para todos os tipos de crimes.>
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A principal diferença é que vamos colocar na lei. Os EUA não colocou. O Código Penal da Califórnia tem quase 32 mil artigos. O nosso tem 360. E no Código de lá quase não se faz menção ao plea bargaining. Eles fizeram uma construção cultural disso. Para exemplificar, imagine que eu tenha um filho de seis meses e ele desde sempre vê que eu sou organizado e sempre arrumo tudo em casa. Ele cresce e vai fazendo o mesmo, naturalmente. Assim foi criada a barganha nos EUA. O grau de assimilação é mais fácil. Seria diferente se eu fosse desorganizado e quando meu filho fizesse 15 anos eu baixasse um decreto dizendo que a partir de agora tudo será diferente. Teria resistência. Lei muda cultura? Pode até mudar, mas é mais difícil, exemplificou.>
Mas por que a barganha colou tão bem à cultura norte-americana? Uma das explicações de Ricardo Gueiros, lembrada em algumas obras, passa pela tradição protestante do país. Assumir culpa perante a coletividade era um bonificador para quem confessava. Mas as razões concretas são muitos mais pragmáticas.>
Lembro que um dos juízes com os quais tive contato me perguntou se a gente não tinha a barganha. Eu disse que, nos moldes deles, não. E ele: como vocês dão conta de julgar tudo?. A pergunta dele deixou claro: um dos motivos pelos quais eles fazem barganha é saber que não têm tempo para julgar tudo. Então, fazem por motivo pragmático. É uma forma paliativa? Sim, é uma forma paliativa usada há mais de 200 anos. Para eles, é uma questão de celeridade e uma questão de possibilidade. Veem como impossível julgar todos os casos. É uma coisa assumida, ninguém esconde, asseverou.>
Nos Estados Unidos, esqueça os julgamentos como os hollywoodianos. Na Califórnia, segundo Gueiros, 97% dos casos terminam não por julgamentos, mas por acordos. E eles valem para os mais variados tipos de crimes, de infração de trânsito a latrocínio e sequestro. O índice é alto na maior parte do país.>
O Texas é o Estado com mais penas de morte. Geralmente, quando fazem acordo em crime de homicídios é para não terem a pena de morte. Fazem o acordo e pegam a prisão perpétua, contou.>
Uma simples infração de trânsito fará com que o multado compareça diante de um juiz e seja questionado por ele: Como você se considera?. Declarar-se culpado pode render um belo desconto no valor a ser pago ao Estado.>
TRANSAÇÃO>
Nos Estados Unidos, uma evidência da assimilação cultural do instrumento é a popularidade dele. Segundo Gueiros, o plea bargaining é algo muito comum ao norte-americano médio.>
Desde 1995, o Brasil tem um instrumento que guarda uma ligeira semelhança com o mecanismo dos Estados Unidos. Trata-se da transação penal. Vale para crimes de menor potencial ofensivo, com pena menor de dois anos. É um acordo entre o Ministério Público e o acusado, mas não há reconhecimento de culpa por parte de quem responde ao processo. Com certa inspiração na barganha americana, também foi pensado para desafogar o sistema de Justiça. Está longe de ser algo vivo no conhecimento geral. A delação premiada anda muito mais popular.>
Confira parte da entrevista de Ricardo Gueiros sobre o plea bargaining nos EUA e no Brasil:>
Como avalia o projeto de plea bargaining proposta por Sérgio Moro?>
Ele está propondo duas coisas. Uma é a não-persecução penal, que existe, mas não está lei. Persecução é perseguição. É o MP deixar de denunciar alguém desde que haja algumas condições, como o crime não ter violência nem grave ameaça, e não ter pena máxima maior de quatro anos. Por exemplo, injúria racial. A pena máxima é de três anos. Nesse crime, se réu confessar, não vai ter nem persecução penal, ele não é nem denunciado. E tem o outro ponto, a barganha para todos os tipos de crimes. Pode ser até latrocínio, extorsão mediante sequestro. Qual a condição para negociar? Confessar. É muito similar aos EUA.>
Como prevê o impacto? A sociedade não vai achar que o criminoso sai em vantagem tendo uma pena menor?>
Depende. A sociedade em geral tem uma sensação de vingança. Quando a barganha servir para diminuir muito a pena de quem ela acha que deveria ter pena maior, vai haver a sensação de impunidade. Mas quando ela perceber que a pena foi razoável e o desfecho foi rápido, vai achar satisfatório. Hoje, a sociedade vê um caso penal durar 15 anos. Com a barganha pode demorar um mês.>
Nos EUA, nos casos mais complexos, não tem quem diz ser inocente para ser julgado depois?>
Sim, mas a maioria não faz isso. Primeiro, o processo é muito árduo, longo. O desgaste emocional e o índice de condenação são altos. Tudo é uma questão de custo e benefícios. E se a pessoa for inocente? Até os inocentes, sem tantas provas da inocência, confessam.>
No Brasil, a barganha será interessante ao criminoso?>
Vai depender do caso. Os advogados, em geral, são críticos por causa do problema de confessar sem ter praticado o crime. Se vai funcionar bem ou mal, temos que esperar.>
PARA MINISTRO, PACOTE TEM "BOA" RECEPTIVIDADE" NO CONGRESSO>
O ministro da Justiça, Sérgio Moro, avaliou, em entrevista à Rádio Jovem Pan, nesta segunda-feira (25), que o pacote anticrime apresentado na semana passada ao Congresso Nacional teve boa receptividade e que é importante que os poderes da República mudem as legislações para endurecer o combate aos crimes violentos, ao crime organizado e à corrupção.>
Eu tenho recebido frequentemente parlamentares, estamos abertos ao diálogo. A minha impressão inicial é que há uma boa receptividade, afirmou Moro. Para ele, o quadro de ineficiência dos sistemas judiciário e de segurança tem que ser alterado. Não temos vergonha em dizer que a legislação precisa ser mais dura.>
Para ele, os projetos apresentados são uma forma de o governo se posicionar sobre temas absolutamente relevantes para o presidente [Jair Bolsonaro], como a prisão após condenação segunda instância. O projeto tem uma série de aprimoramentos de medidas de investigação, como a ampliação do banco genético.>
Em relação à prisão após condenação em segunda instância antes, portanto, do término do processo diz Moro, a ideia do governo foi consolidar o entendimento do Supremo, que desde 2016 decidiu por quatro vezes que a detenção nesses casos era constitucional. Se o processo penal não funciona, não adianta nada. É como comparar uma Ferrari e não ter gasolina.>
O pacote chegou a ser fatiado para ser mais palatável aos parlamentares. A proposta que criminaliza o caixa dois, tema sensível aos políticos em geral, tramita de forma separada. Caixa dois é quando a verba de campanha não é declarada.>
PROPOSTAS APRESENTADAS PELO GOVERNO>
Anticrime>
No início do mês, o ministro da Justiça apresentou uma série de propostas legislativas relacionadas à segurança pública. Ao todo, são 14. Elas estão sendo chamadas de pacote anticrime. Foi a principal ação de Sérgio Moro desde que deixou a magistratura para fazer parte do governo federal, no primeiro escalão do governo Jair Bolsonaro (PSL). Todas devem ser votadas pelos parlamentares para tornarem-se leis.>
Os pontos do pacote>
Principais propostas>
Formalizar em lei a atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) de permitir a prisão após condenação em segunda instância;>
Fazer com que condenados por Tribunal do Júri comecem a cumprir pena após a decisão, ainda que seja possível recorrer;>
Em caso de legítima defesa, reduz a pena até a metade ou deixa de aplicá-la se o ato decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção. Foi interpretado como permissão para policiais matarem em serviço.>
Considerar como organizações criminosas facções conhecidas como PCC, Comando Vermelho, Amigos dos Amigos e milícias.>
Deixar de considerar as videoconferências de presos como excepcionais e ampliar o uso desse mecanismo para reduzir deslocamentos de presos para audiências.>
Municípios, Estados e União deverão criar ouvidorias para que qualquer pessoa possa relatar, anonimamente, crimes contra a administração pública. Além disso, o informante poderia ser recompensado caso a denúncia resulte na devolução de dinheiro público desviado.>
Caixa 2>
Tipificar o crime de caixa 2, com aumento da pena se houver envolvimento de agente público e estende a punição para quem deu o dinheiro não declarado. Hoje, esse crime é julgado com base no Código Eleitoral, no trecho que fala sobre omissão ou falsidade na prestação de contas à Justiça Eleitoral. Por pressão de parlamentares, esse ponto específico foi separado dos demais. O ministro Sérgio Moro justificou-se dizendo que caixa 2 não é corrupção. A declaração contrasta com o que ele disse em 2017, quando ainda era juiz. Temos que falar a verdade, a caixa 2 nas eleições é trapaça, é um crime contra a democracia. Me causa espécie quando alguns sugerem fazer uma distinção entre a corrupção para fins de enriquecimento ilícito e a corrupção para fins de financiamento ilícito de campanha eleitoral. Para mim a corrupção para financiamento de campanha é pior que para o enriquecimento ilícito.>
Plea bargaining>
Solução negociada>
A medida é similar a um mecanismo usado em larga escala nos Estados Unidos. Em suma, permite que o criminoso que confessar o crime possa barganhar uma pena menor. Com a confissão, o processo é encerrado. Com isso, pretende-se evitar que processos se arrastem por anos na Justiça e, ainda, que fazer com que a rotatividade nos presídios seja maior, aliviando os casos de superlotação. Haverá o acordo apenas se advogado e Ministério Público aceitarem fazê-lo. Depois disso, caberá ao juiz homologar ou não o acordo. Ele poderá não homologar se considerar o acordo desproporcional.>
Persecução>
A proposta também permite a chamada não-persecução penal para casos de crimes sem violência ou grave ameaça, e com pena máxima de até quatro anos. Isso quer dizer que, dentro dessas condições, o Ministério Público poderá abrir mão da denúncia e do processo, se houver confissão do suspeito.>
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