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Desmembramento de cartórios milionários no ES vira cabo de guerra na Assembleia

Desmembramento de cartórios milionários no ES vira cabo de guerra na Assembleia

Projeto do Tribunal de Justiça tramita desde maio, sem consenso. "Esta Assembleia jamais vai se curvar para cartório", bradou um deputado. Confira

Publicado em 2 de setembro de 2021 às 02:00

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Sessão da Assembleia Legislativa do Espírito Santo
Sessão da Assembleia Legislativa do Espírito Santo. (Ana Salles/Ales)
Letícia Gonçalves
Editora-adjunta de Política / [email protected]

Há meses, tramita na Assembleia Legislativa do Espírito Santo um projeto de autoria do Tribunal de Justiça (TJES) que prevê a reestruturação dos serviços de cartórios no Estado. Na justificativa enviada ao Legislativo, o presidente do Tribunal, Ronaldo Gonçalves de Sousa, relata a "necessidade de ampliar ou reduzir a atividade extrajudicial em determinadas localidades".

Os cartórios, nos quais a população registra firma, imóveis, casamentos e outros serviços, são também chamados de serventias extrajudiciais. Na prática, se aprovado, o texto resultaria na retirada de alguns serviços de cartórios com arrecadação milionária.

Não é surpresa, portanto, que o assunto tenha despertado um debate na Assembleia que está longe do fim. Várias emendas, que são alterações no projeto original, foram apresentadas pelos deputados. Janete de Sá (PMN) chegou a alertar, na sessão desta quarta-feira (1º), que há "interesses inconfessáveis" em cena. Sergio Majeski (PSB) questionou algumas das emendas que, no entender do socialista, desvirtuam a proposta do TJES. Não houve consenso e o projeto não foi votado.

Desmembramento de cartórios milionários no ES vira cabo de guerra na Assembleia

Não há, ou não deveria haver, "donos" de cartórios. Desde a Constituição de 1988, é obrigatória a realização de concurso para escolher os titulares dessas serventias. Eles, no entanto, não são funcionários públicos, exercem uma atividade delegada. São responsáveis pela administração dos cartórios e utilizam a arrecadação para pagar funcionários, arcar com os serviços, repassar contribuições a fundos públicos, etc. O que sobra é a remuneração do responsável.

Há cartórios que não são comandados por concursados, seja porque o responsável chegou ao posto antes de 1988, seja porque a serventia ainda não foi oferecida em concurso público. Neste caso, o responsável é um interino e o cartório é considerado "vago".

O TJES pretende desmembrar cartórios milionários que estão sob responsabilidade de interinos em três cidades: Vitória, Linhares e Guarapari. A medida segue orientação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A proposta prevê também a integração, em nove cidades, dos serviços de cartórios que têm dificuldades de se manter financeiramente. Todas as serventias que podem ser afetadas pela mudança estão “vagas".

O projeto também prevê a integração ou anexação de cartórios onde a atividade prestada é economicamente inviável. Isso acontece quando o volume de serviços e a receita não são suficientes para a manutenção da serventia.

As emendas apresentadas por deputados são pontuais e, via de regra, tratam de cartórios localizados em seus redutos eleitorais ou atendem a pedidos de interessados em cartórios específicos, como na longínqua Burarama, localidade de Cachoeiro de Itapemirim. Nem todas, no entanto, foram acatadas pelas comissões temáticas da Assembleia.

“A divisão de cartórios em grande número pode inviabilizar o funcionamento da serventia e gerar deficiência na prestação do serviço, da sua qualidade ou eficiência, podendo ainda obrigar o cidadão a procurar diversos cartórios e requerer várias certidões para concretizar o direito à propriedade”, ressaltou Marcos Garcia (PV), em uma das emendas.

"As emendas 12 e 15, de Marcos Garcia, dizem que fica vedado o desmembramento em Vitória, Cariacica e Linhares. Se o projeto tem como objetivo fazer o desmembramento, por que isso?", questionou Majeski, em conversa com A Gazeta.

Houve até a apresentação de uma emenda oral e coletiva, limitando a arrecadação dos cartórios em todo o Espírito Santo em R$ 4,5 milhões por semestre. Marcelo Santos (Podemos), relator do projeto na Comissão de Justiça, alterou o texto para incluir que trata-se de um valor líquido, embora ele não seja um dos subscritores da emenda.

Não há lei que limite a arrecadação dos cartórios no país. Se concursado, o titular de uma serventia pode receber valores até mesmo superiores ao teto do funcionalismo público, uma vez que não é, formalmente, um servidor. Mas, frise-se, a arrecadação do cartório não é igual ao lucro, mas sim a remuneração do responsável.

O projeto ainda está na Comissão de Justiça, com prazo até o dia 13. Depois, vai à apreciação do plenário da Assembleia.

OS CARTÓRIOS DESMEMBRADOS

Em Vitória, a proposta original é que a partir do cartório da 3ª Zona de Registro Geral de Imóveis, que fica na Enseada do Suá, sejam criadas mais três serventias com as mesmas atribuições. Assim, no lugar de um cartório para registro de imóveis, a região teria quatro. Em 2020, a serventia da 3ª Zona arrecadou um total de R$ 12,6 milhões. Valor, que, agora, vai ser dividido, se o projeto for aprovado.

Já em Linhares, dois novos cartórios seriam criados a partir do 1º Tabelionato de Protesto, Ofício de registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Pessoas Jurídicas. Passariam a funcionar, no mesmo espaço territorial, três serventias para a mesma especialidade. Em 2020, o cartório em Linhares arrecadou R$ 11,7 milhões.

As atribuições do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelionato de Guarapari seriam divididas em duas serventias, uma delas responsável apenas pelo serviço de tabelionato de notas. O cartório arrecadou R$ 2,6 milhões em 2020.

FUSÃO

Na outra ponta, a fusão de cartórios que têm baixa arrecadação se daria entre uma serventia vaga – que tem um responsável interino, não concursado – com uma outra já existente, mesmo que elas tenham atribuições distintas. A integração pode fundir dois cartórios vagos que têm o mesmo responsável, ou um cartório vago com um que já tenha um titular definido em concurso.

As cidades onde há cartórios que seriam contemplados por essa mudança são: Anchieta, Marechal Floriano, Pedro Canário, Iúna, São Gabriel da Palha, Nova Venécia, Cachoeiro de Itapemirim, Jaguaré e Muqui.

"Há uma ideia de que quando o cartório arrecada o dinheiro é do tabelião, mas não é, é pra manter o cartório e vai para fundos, como os da Defensoria Pública, do Ministério Público e do próprio Judiciário", afirmou Marcelo Santos, à reportagem.

A reestruturação dos cartórios não gera impacto orçamentário no Judiciário, já que o dinheiro arrecadado pelas serventias vem de taxas pagas por pessoas que utilizam os serviços.

INCONSTITUCIONALIDADE

Nos bastidores, quem entende um pouco mais do tema, árido para a maior parte dos parlamentares, avalia que algumas das emendas propostas, se incorporadas ao texto, vão resultar em inconstitucionalidade e, consequentemente, acabar derrubadas na Justiça.

"(O projeto) sofreu diversas emendas, a pedido de pessoas que procuraram os deputados. Qualquer emenda que não verse sobre desmembramento ou anexação de serventia não tem pertinência com o projeto", afirmou Freitas (PSB), na sessão. Anteriormente, como relator na Comissão de Finanças, ele rejeitou todas as emendas, mantendo o projeto original do TJES, mas foi derrotado pelos colegas na comissão.

Além da emenda oral que trata da limitação de arrecadação, outras foram apresentadas, com temas que abordam desde tempo de atendimento ao público a taxas cobradas nas serventias.

"É a farra do boi no Estado do Espírito Santo. Não vamos criar falsos milionários pagos com o suor do povo do Espírito Santo", bradou Janete, nesta quarta, em meio a um bate-boca em que já ninguém se entendia.

"Não tem nenhum deputado aqui defendendo cartório. Ano passado faturaram R$ 237 milhões, ninguém vai defender isso. Queremos melhorar o atendimento ao cidadão", afirmou Doutor Hércules (MDB).

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Esta Assembleia jamais vai se curvar para cartório

Bruno Lamas (PSB)
Deputado estadual
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Já Marcos Garcia que, em dado momento, passou a presidir a sessão (o presidente Erick Musso estava ausente), fez questão de ressaltar que é empresário e que tem rendimentos próprios, num recado caso houvesse insinuação sobre interesses de deputados em relação à arrecadação dos cartórios. Em 2020, Garcia disputou a Prefeitura de Linhares. Foi, em todo o estado, o que declarou maior patrimônio: R$ 9,12 milhões.

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