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A carta de um padre que fez deputado perder o mandato no ES

A carta de um padre que fez deputado perder o mandato no ES

O documento fez o parlamentar e o padre serem acusados de desrespeito à Lei de Segurança Nacional

Publicado em 13 de junho de 2018 às 20:12

O ex-governador José Ignácio Ferreira teve o mandato de deputado restituído simbolicamente pela Assembleia Crédito: Tati Beling/ALES

A simples leitura, no plenário da Assembleia Legislativa, de uma carta enviada por um padre foi o suficiente para a ditadura militar cassar o mandato de um deputado estadual. Na missiva, ao contrário do que defensores do autoritarismo poderiam pensar, o sacerdote não achincalhava os militares, não defendia uma "ditadura socialista" e muito menos pretendia "destruir as famílias".

O padre Álvaro Regazzi, de Itarana, apenas reclamava da aplicação de multas consideradas por ele abusivas contra pobres matutos. Eram donos de pequenas serrarias e bares, gente simples do interior que vivia em situações precárias.

Além disso, dizia que não hasteou a bandeira do Brasil na escola que dirigia naquela data comemorativa. Escreveu que "discursos bobos e chocos" diante dela nada resolveriam. (Leia a carta abaixo. O documento está no Arquivo Geral da Assembleia Legislativa)

A carta foi endereçada, no dia 7 de setembro de 1968, ao então deputado estadual José Ignácio Ferreira, do antigo MDB. Meses depois, o parlamentar acabou sumariamente cassado. Colega de plenário e de partido, o deputado Dailson Laranja apoiou José Ignácio e endossou o que o padre dizia. Também perdeu o mandato. A cassação de ambos foi publicada no dia 13 de março de 1969.

O padre e o deputado foram acusados de desrespeitar a Lei de Segurança Nacional. Álvaro Regazzi precisou dar explicações à polícia por conta da carta considerada "subversiva". 

SEM POLÍTICA

Uma disputa política normal, cotidiana nos parlamentos brasileiros, onde deveriam reinar a pluralidade e a democracia, pode ter sido o pano de fundo da cassação. É que dois dias depois de os dois perderem os mandatos ocorreria a eleição da Mesa Diretora e a disputa estava acirrada, como contou José Ignácio.

Na época, a Assembleia tinha 43 deputados. Eram 30 da Arena, o partido de sustentação da ditadura, e 13 do MDB, o partido de oposição. O ex-deputado lembra que nove da Arena fecharam apoio ao MDB para a votação. Assim, seriam 22 votos da oposição e 21 da situação.

"Quando veio a cassação, tiraram dois. Eu e o Dailson. Ao tirar os dois, ficaria 21 a 19 (para a situação)", relembrou José Ignácio.

A cassação, que veio acompanhada pela suspensão dos direitos políticos por dez anos, se deu em decorrência do AI-5, o ato institucional publicado no dia 13 de dezembro de 1968 e considerado o mais duro golpe na democracia brasileira. No Brasil, dezenas de outros deputados estaduais, federais e senadores perderam os cargos por conta do ato.

Na terça-feira (12), em uma sessão histórica, a Assembleia Legislativa devolveu simbolicamente os mandatos dos deputados cassados. Além de José Ignácio e Dailson Laranja, tiveram os cargos de volta os ex-deputados Hélsio Pinheiro Cordeiro, cassado em 4 de julho de 1969, e Benjamin Carvalho de Campos, cassado em 1948, após o cancelamento do registro do PCB.

A CARTA DO PADRE LIDA POR JOSÉ IGNÁCIO

A carta de um padre que fez deputado perder o mandato no ES Crédito: Reprodução

Itarana, 7 de setembro de 1968. Sr. deputado José Ignácio,

Hoje é 7 de setembro. Estou voltando da roça onde fui celebrar missa. Logo aos fundos da capela (ilegível) e dois filhos ralando araruta para fazer polvilho. Vai dar uns 15 quilos. Desde a planta até o polvilho, gastam umas 50 horas de serviço. 6 dias de trabalho. Vão perceber 2 contos ao dia se venderem o polvilho a um conto o quilo. O salário mínimo é 3,30 o dia. De 8 horas. Com domingo remunerado.

Ontem, voltei da roça. Felicito Fioroti. Sua mulher sofre de coração. Já foi algumas vezes ao Rio. Gastou dinheiro a rodo. Toca uma serraria michuruca e um barzinho de 5ª classe, destes do cafundó do Judas. Emprega umas 4 famílias, emprega não, alimenta 4 famílias. Aparece a turma da fiscalização: uns 4.000,00 de multa pra deixar de ser besta. Logo à frente, Henrique Pedro. Alemão. Atrasado. Tem medo de gente e quanto mais fiscal. Tem uma serraria michuruca. Mantém duas famílias. Quase 2.000,00 de multa.

Logo em frente, Christiano Pagung. Tem uma serraria michuruca. Mantém 3 famílias. 2.000,00 de multa. Logo em frente, Leopoldo Vervloet. Mantém 4 famílias. Uma serraria michuruca. A turma do fisco foi buscá-lo na roça. Levado como se fosse preso. Sujo e fedendo foi obrigado a assinar cousas de que não sabia.

Só 2.000,00 pra deixar de ser besta!

Sr. Deputado não entro no mérito da multa. Ninguém entende estas Leis de Impostos. Menos ainda os pobres matutos, donos de serrarias michurucas. De mais a mais têm suas organizações patente. Pagam impostos. Não pertencem aos milhares que não são constituídos e, por isto, andam burlando o fisco e não são importunados pelo fato mesmo de não serem constituídos.

Minha preocupação é o fenômeno social. O roceiro de minha paróquia é um escravo. Escravo com todas as letras. Estradas, escolas, assistência social, direitos trabalhistas e quejandos... pra quê todo este luxo para o matuto da roça?

Mas se este matuto, num rasgo de puro instinto de conservação, montar um barraco, vender tudo que tem para montar uma serraria e trabalhar 10 ou 12 horas por dia, aí aparece o fiscal. Uma porção de amolação. E para não esquecer que este desgraçado precisa colaborar na manutenção do governo, dos pulhas de funcionários e os 3.000,00 dos excelentíssimos deputados, tem de pagar multa. Sr. Deputado, 2.000,00 para estes párias é dinheiro para chuchu.

E o fisco, a turma volante lá de Colatina, inexorável: dura lex, sed lex.

Este pessoal não ganha nada com serrarias, olarias, nem estes botecozinhos de 5ª classe. Socialmente falando, representam um emprego para eles mesmos. Nada mais.

E os pobres ficam apalermados. Intimidados. Descoroçoados. Sem vontade de fazer nada. Porque o fiscal vem aí. É por isto mesmo que preferem fazer polvilho a 2,00 o dia. Hoje é 7 de setembro. Todo mundo na roça está trabalhando. Trabalhando para pagar funcionários que hoje têm feriado. Na praia, pescando, passando, visitando mulheres...

Sou diretor do Ginásio. Não hasteei a bandeira. Ensinar o que ao jovem? Fazer discursos bobos e chocos diante da bandeira? Não resolve. Marchar na rua? Pior. Incitar a violência? Seria preso.

Sr. Deputado, a Igreja tomou vergonha na cara e está mandando brasa. Ela sabe que estas estruturas têm de acabar. De que jeito? Vamos ver. Não poderia o sr. conferenciar com sua turma aí da Assembleia e mandar brasa também? Para termos o nosso 7 de setembro...

Cordialmente,

Padre Álvaro Regazzi

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