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Mulheres e a música contra o machismo

Mulheres e a música contra o machismo

Capixabas formam grupos só de mulheres

Publicado em 8 de março de 2019 às 02:03

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No Tocata Brass, elas mandam ver nos metais. (Ricardo Medeiros)

Seja nas notas de instrumentos pesados, seja no batuque da bateria de carnaval, a música também é uma forma de as mulheres promoverem o empoderamento e passarem a mensagem de respeito e igualdade entre os gêneros.

É com a música, uma linguagem universal e fácil de tocar as pessoas, que o grupo Tocata Brass, da Faculdade de Música do Espírito Santo (Fames) e o bloco BatuQdellas passam a mensagem de que lugar de mulher é onde ela quiser.

Fabíola Costabeber, 31, estuda na Fames. Ao entrar na faculdade, percebeu que os grupos musicais formados eram só de homens ou com poucas mulheres e ela não se sentia confortável de fazer parte deles. Veio, então, a ideia de se juntar com outras alunas.

Ritmistas do BatuQdellas, bloco apenas de mulheres formado no ano passado. (Marcelo Prest)

“Comentei com uma amiga sobre a vontade formar um grupo de meninas que tocassem instrumentos de metais. Convidei algumas meninas e o grupo começou a tocar mesmo em agosto de 2017”, lembra.

O Tocata Brass é formado por seis mulheres: além de Fabíola, Tatiane da Cruz, 21, Flávia Bonelli, 33, Dayane Bacelar, 21, Izabel dos Santos, 17, e Mariele da Silva, 23.

Tatiane diz que acredita no poder transformador da música. “Acho que a gente pode sim mudar o pensamento de meninas que nem levam em consideração entrar pra música. Eu acredito que a mulher pode ser e fazer o que ela quiser.”

EMPODERAMENTO

Já o BatuQdellas, de Vitória, surgiu o ano passado, por ideia de Crystal Vettoraci, 26, que via que nas baterias dos blocos havia muitos homens e pouco espaço para mulheres. Hoje, elas já são 53 ritmistas.

Uma das integrantes é Karoline Littig, 29, que ensaia com o tamborim desde outubro. Ela conta como essa experiência afetou a vida dela. “A música me ajudou a entender que eu posso fazer o que eu quiser. Às vezes, o que parece que não vou dar conta, afirmo que vou conseguir. Depois da música e desse coletivo de mulheres, ficou mais fácil encarar os desafios que aparecem.”

Veja em destaque mais depoimentos de outras integrantes dos grupo musicais.

"TROCAMOS EXPERIÊNCIAS E DAMOS FORÇA UMA À OUTRA"

Marluce Lopes. (Vitor Jubini)

“Desde criança, a música faz parte da minha vida. No bloco, temos uma diversidade de mulheres, trocamos experiências e damos força uma para a outra. Eu já fui vítima de violência. Depois me separar, vim do interior para a Grande Vitória, com dois filhos pequenos e comecei a namorar um cara. Ficamos juntos por um ano. Mas percebi sinais de descontrole nele e quis terminar. Se eu me atrasasse cinco minutos ele falava coisas completamente sem sentido, me acusando de estar com outro homem. Eu vi essas coisas e não quis mais estar naquele relacionamento. Ele me bateu. Ele achava que eu era propriedade, que ele era dono. O machismo é algo muito perverso. Que toca no corpo da mulher, ele domina o corpo, o pensamento, a moral. Ele inferioriza a mulher. Combater o machismo é uma desconstrução diária que passa por darmos bons exemplos às crianças.”

Marluce Lopes doutora em educação, 52 anos, toca caixa no BatuQdellas

"EMPODERAMENTO VEM COMO CONSEQUÊNCIA"

Crystal Vettoraci. (Vitor Jubini)

“Nosso objetivo é musical. E assim que a gente o alcança, automaticamente impulsionamos outras mulheres. Por isso, acontece ali uma troca e um empoderamento feminino. Nosso objetivo é promover a música no cenário capixaba com a participação mais efetiva das mulheres. E o empoderamento vem como consequência e, na medida do possível, o grupo abraça certas causas. O carnaval é um momento reerguer as forças culturais e a gente tem que aproveitar esses momentos para passar a nossa mensagem. Onde a galera está mais aberta a escutar, a conversar. Trabalhava na minha área de formação, como administradora. Mas depois que surgiu o batuque e a música e eu vi a força que eu tinha e a necessidade atuar nisso. Então, acho que a música foi um impulso para perceber que a minha vida só funciona através da música. Larguei tudo e fui viver disso, me deu status de poder comigo mesma.”

Crystal Vettoraci Autônoma, 26 anos, mestra de bateria do Batuqdellas

"QUERIAM QUE EU TOCASSE UM INSTRUMENTO MENOR"

Dayane Bacelar. (Ricardo Medeiros)

“Sempre tive curiosidade de tocar tuba. Só que quando tive a oportunidade o maestro com quem tocava na época me desencorajou dizendo que a tuba é para homem, que é mais forte. Ele queria que eu tocasse um instrumento menor. Acabei deixando para lá, porque eu sabia que em algum momento eu iria tocar tuba, porque eu queria tocar esse instrumento. Até chegar na faculdade e ser incentivada. Hoje, toco a tuba e me sinto muito feliz. É o que eu gosto de fazer e ninguém vai nem vai me tirar isso. Eu gosto de mostrar que eu estou ali e sou tão boa quanto eles. E também aqueles que falam ‘ok, você toca. Mas não é boa’. Eu sou boa! E eu vou ser tão boa quanto eles. Hoje, minha família sente orgulho e vê que estamos fazendo acontecer, que viramos referência para algumas pessoas. Saber que somos capaz de tudo, nos dá um gás para irmos além.”

Dayane Bacelar estudante, 21 anos, toca tuba no Tocata Brass

"PRECISAMOS DESCOBRIR OS NOSSOS LUGARES NA SOCIEDADE"

Flávia Bonelli Silva. (Ricardo Medeiros)

“A gente precisa deixar em evidência, se inspirar e descobrir os nossos lugares na sociedade. Temos que desconstruir paradigmas e reconstruir novos pensamentos. Tem um autor, Fernando Chaibe, que fala que a performance musical é um relacionamento social e isso é onde a gente informa a nossa arte. Então, é aonde a gente desconstrói processos de opressão e agressão intelectual e física em relação à mulher. No grupo, enquanto percursionista, sou uma mulher negra, eu tenho uma valorização da minha autoestima. Eu fui me descobrindo para poder falar disso através do meu instrumento. Eu desconstruo o preconceito de que eu toco tambores e, se os negros fizeram isso, isso é um benefício. E mostro para homens e mulheres que, quando toco meu instrumento, isso é possível. O benefício é aumento de autoestima, é ter autonomia, aprender a se comunicar.”

Flávia Bonelli Silva estudante, 33 anos, toca percussão na Tocata Brass

"FICA MAIS FÁCIL ENCARAR OS DESAFIOS QUE APARECEM"

Karoline Littig toca tamborim no grupo BatuqDellas. (Vitor Jubini)

 

A música me ajudou a entender que eu posso fazer o que eu quiser. As vezes, o que parece que eu não vou dar conta eu afirmo que vou conseguir. Fica mais fácil encarar os desafios que aparecem. Sem falar que ajuda na nossa auto estima mesmo. É transformador. O Carnaval é um ato político. Então, onde estiver muita gente, onde você consegue chegar nessas pessoas que muita vezes estão fora do seu convívio mas que estão ali reunidas e se você puder aproveitar para levar uma mensagem não só para curtir, o que é legal. O carnaval é um momento onde as pessoas estão abertas a receber coisas novas. A música é uma facilitador. As pessoas recebem de uma maneira legal e é uma forma de levar com alegria uma mensagem bacana para todo mundo, principalmente para as mulheres. É legal ver a forma como elas recebem isso. Elas vem falar depois do bloco que gostaram, acham incrível. Isso é um gás para o grupo.

Karoline Littig, toca tamborim

"EU ACREDITO QUE PODEMOS FAZER QUALQUER COISA"

Tatiane da Cruz, toca trombone no grupo Tocata Brass, da Faculdade de Música do Espírito Santo (Fames). (Ricardo Medeiros)

A música pode mudar as pessoas. Pode mudar pensamentos. Hoje em dia, poucas meninas tocam instrumentos de metal. Então acho que a gente pode, sim, mudar o pensamento delas. Podemos ser uma inspiração para elas. É importante levar a mensagem que as mulheres podem ser, estar e fazer o que quiserem. Eu acredito que podemos fazer qualquer coisa. Quando eu comecei a tocar em uma banda marcial, em 2012, me falaram que eu nunca conseguiria, disseram que o trombone não era instrumento de menina. Me senti triste porque queria muito tocar trombone, porque são poucas meninas que tocam. Escolhi outro instrumento, sem desistir do trombone. Até que, finalmente, encontrei um maestro que me encorajou. Hoje, me sinto realizada e espero que outras meninas não passem pelo o que eu passei. Acho importante levar essa mensagem para as meninas de hoje, que ela podem ser e fazer o que quiserem.

Tatiane da Cruz, toca trombone

"A MÚSICA ALCANÇA ONDE UMA PALAVRA NÃO CHEGA"

Fabíola Costabeber, toca trombone no grupo Tocata Brass, da Faculdade de Música do Espírito Santo (Fames). (Ricardo Medeiros)

Ao entrar na faculdade, fiquei curiosa para saber porque tão poucas mulheres tocam instrumentos de metais. Comentei com uma amiga que tinha vontade de montar um grupo só para meninas porque me sentia à vontade para tocar num grupo misto ou só para homens, por conta da timidez. Conseguimos formar o grupo e com ele levamos a mensagem de incentivo para meninas para que elas toquem instrumentos que não são comuns e que isso pode ser uma profissão para elas. A música alcança onde uma palavra não chega. Quando a gente toca, as crianças prestam atenção e sentem vontade de tocar. A mensagem através da música tem o poder de chegar onde a palavra não vai.

Fabíola Costabeber, toca trombone

"QUEREMOS ATINGIR MAIS MULHERES"

Aisha Jacob é uma das criadoras do coletivo. (Facebook | Aisha Jacob)

Aisha Jacob é uma das criadoras do coletivo Não é Não. A frase caiu no gosto – e nos corpos – de milhares de brasileiras no último carnaval. Uma das criações do coletivo é uma tatuagem temporária com a frase que encabeça o movimento. Na próxima terça-feira, Aisha participa do evento “Roda de Conversa – Dia da Mulher”, que acontece no auditório da Rede Gazeta, em Vitória. O encontro também terá a presença da atriz e ativista Maria Paula, além da participação dos coletivos Think Olga e Das Pretas.

Como e por que começou o movimento “Não é não”?

Começamos em 2017, quando um mês antes do carnaval estávamos em um grupo de amigas e uma delas foi vítima de assédio, depois de falar “não” três vezes para um cara. Juntas, começamos a relatar outros casos de assédio que tínhamos sofrido. Nós estávamos com contato para fazer tatuagens para usarmos no carnaval. E aí pensamos em fazer as tatuagens com a frase “não é não”, que deveria ser uma coisa fácil de se entender. Assim, em 24 horas reunimos um grupo de 40 mulheres que viabilizou a primeira produção das tatuagens. Foram 4 mil unidades, no Rio de Janeiro. Sentimos que podíamos preencher uma lacuna que todas as mulheres passavam, mas pouco falavam. A adesão foi super-rápida. Em 2018, o movimento expandiu para seis cidades, com financiamento coletivo produzimos 26 mil tatuagens. Nesse ano, criamos um grupo de embaixadoras em cada Estado. Hoje somos em 37 mulheres e conseguimos produzir 180 mil tatuagens.

Para o ano que vem, a expectativa é aumentar o número de tiragem das tatuagens?

Ainda não paramos para pensar nisso. Mas com certeza queremos continuar o projeto, atingir mais mulheres, falar sobre assédio. Esse foi o primeiro ano com a lei de importunação ativa. Então, estamos pegando todos os relatórios das secretarias de segurança para conseguir fazer uma média e entender o que aconteceu neste carnaval.

Neste semana, tivemos muitos casos de violência contra mulher. Uma delas, foi uma publicitária assediada durante o carnaval. De uma forma geral, que mensagem você passaria para as mulheres que sofrem com isso?

O mais legal é ela ir até a delegacia da mulher para fazer o boletim de ocorrência. Isso é importante porque nos dá dados para conseguir fazer com que os governos ajam. A pessoa também tem que saber se quer continuar com o processo. Eu, particularmente, acho que tem que seguir com isso, sim.

Você acha que o “não é não” deixou de ser uma frase sobre a recusa de ficar com uma pessoa e passou a ser o lema de um movimento?

Sim! E é muito legal porque a gente sente no carnaval que todo mundo que está com a tatuagem vira uma rede de apoio. A gente sempre fala, também, que é um projeto de reeducação, a gente quer reeducar homens e mulheres e isso é um processo longo. Todos nós temos atitudes machistas que, às vezes, nem damos conta.

Como vocês, que começaram esse movimento, se sentem ao ver que ele está em todo país?

Lisonjeada. Nem temos ideia da grandiosidade que está tomando. É lindo de ver mulheres vindo nos agradecer e se envolvendo no projeto. É forte e potente. É o que nos dá gás para continuar.

Qual a expectativa para o evento de semana que vem?

Conheço pouco sobre o Espírito Santo. Acho que vai ser uma experiência muito legal.

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